Tema central
NUSO Nº 2021 / Agosto - Setembro 2021

Sobre a crescente irrelevância da América Latina

O apogeu da América Latina reside em seu passado. Ao longo do último século, a região perdeu posições em todos os indicadores de relevância disponíveis: proporção da população mundial, peso estratégico, volume comercial, projeção militar e capacidade diplomática. Este artigo convoca a um realismo esperançoso: se a estrutura joga para baixo, é preciso compensá-la com agência. Um diagnóstico correto é o primeiro passo para superar tanto o negacionismo, que ignora a realidade, como o declinismo, que rejeita a esperança.

Sobre a crescente irrelevância da América Latina

Neste artigo, demonstramos a perda de relevância relativa da América Latina (isto é, em comparação com outras regiões do mundo) em termos estruturais e comportamentais (ou seja, pelo que os Estados da região são e fazem). Adotando uma perspectiva de longo prazo, vamos além da conjuntura para demonstrar, com dados duros, que a região se encontra em uma trajetória declinante há décadas e mantém hoje, coerente com sua história, essa mesma trajetória. Joan Manuel Serrat mentia: a verdade pode ser triste. Mas aceitá-la é o primeiro passo para encontrar a solução.

A relevância internacional da América Latina: conceitos e metodologia

O propósito deste artigo é comparar a América Latina com regiões equivalentes quanto à sua relevância aos olhos das grandes potências. Por isso, é necessário que nossa definição das diferentes regiões do globo exclua os Estados que, por definição, são os atores mais relevantes do sistema internacional. Isso não é um problema quando se trata de África, América Latina ou Oriente Médio, mas requer precisões conceituais em outros lugares. Por exemplo, em nossa definição de Ásia como região, excluímos a China. Em nossa definição de Europa, não consideramos a Rússia, tampouco a Alemanha, França e Grã-Bretanha durante o período anterior à Segunda Guerra Mundial, quando eram grandes potências. Ao excluirmos os Estados Unidos, o interesse de considerar a América do Norte nessas comparações é praticamente nulo. Essas decisões nos permitem comparar em igualdade de condições cinco regiões às quais as grandes potências puderam atribuir maior ou menor importância: África, América Latina, Ásia, Europa e Oriente Médio.

Para estabelecermos os limites de cada região, adotamos as definições do projeto Correlates of War, o banco de dados que utilizamos como fonte para todas as nossas estatísticas. Dessa forma, a América Latina inclui os países do Caribe, a África abrange os países do norte do continente, e o Oriente Médio se estende da península Arábica à Ásia central. Por sua vez, a Ásia é entendida como a Ásia-Pacífico e abarca desde o subcontinente indiano até a Oceania. É importante considerar que, como as observações do Correlates of War são coletadas por país-ano, elas incluem somente os Estados soberanos que fazem parte do sistema internacional. Por exemplo, Cuba não integra a América Latina desde 1902. Por esse motivo, nossa definição de África no início do século xx abrange somente a Etiópia, o Marrocos e a África do Sul, dado que a descolonização do restante dos Estados ocorreu posteriormente. Algo similar acontece com a Ásia e o Oriente Médio, onde a quantidade de Estados e, consequentemente, o tamanho da região aumentaram com o tempo.

A relevância internacional da América Latina: indicadores estruturais

Uma medida básica da relevância de uma região é sua população. Ela tem uma relação direta com o poderio tanto econômico como militar de um país e determina a mencionada relevância, seja como ameaça ou como oportunidade. No gráfico 1, observamos a evolução da população das cinco regiões a partir de seis momentos-chave da história latino-americana: (a) a guerra hispano-estadunidense (1898), que consolidou a hegemonia dos eua sobre o hemisfério; (b) a quebra de Wall Street (1929), que deu origem à Grande Depressão; (c) a Revolução Cubana (1959), que importou a Guerra Fria para a região; (d) a queda do Muro de Berlim (1989), que pôs fim à Guerra Fria; (e) os atentados de 11 de setembro (2001), que deram origem à guerra contra o terrorismo; e (f) a situação atual.


Fonte: índice composto de capacidade nacional (cinc, na sigla em inglês), Correlates of War1.

Nessa comparação, fica claro que, na era do imperialismo europeu na África, Ásia e Oriente Médio, a América Latina ocupava um lugar privilegiado como a segunda região de Estados independentes mais povoada depois da Europa, graças em grande parte à maciça migração europeia. Essa situação se reverteu no pós-guerra, quando o surgimento de novos Estados na Ásia mudou radicalmente a distribuição da população mundial nos Estados soberanos. A região que mais perdeu peso relativo foi a Europa2, mas a América Latina caminhou na mesma direção, apesar de suas maiores taxas de natalidade, deixando de ser a terceira região mais povoada em 1959 para se tornar a quarta em 1989, posição que mantém desde então.

A população de uma região é um indicador muito rudimentar de sua relevância. No geral, tendemos a associar a relevância de uma região com seus recursos estratégicos e a capacidade de mobilizá-los. Costuma-se dizer, por exemplo, que o Oriente Médio é relevante por suas reservas de petróleo ou que a América Latina é (ou será) relevante por suas reservas aquíferas. Mas como medir esses recursos e capacidades? O projeto Correlates of War oferece um índice composto de capacidades nacionais (cinc, na sigla em inglês) e elaborado especificamente para captar a relevância estratégica3. Ao mesmo em que considera a população total dos países, o cinc agrega os indicadores de população urbana, produção de ferro e aço, consumo de energia, gasto militar e efetivo militar para calcular a proporção dessas capacidades nacionais de cada país. Mostramos no gráfico 2 a distribuição do cinc nas regiões e os momentos que nos interessam.

Utilizando esse indicador um pouco mais refinado de relevância estratégica, verificamos que a América Latina perdeu posições. Em terceiro lugar, mas ainda comparável com a Ásia no início do século xx, a região foi sendo cada vez mais relegada. Novamente, o processo de descolonização produziu um salto notável na relevância da Ásia no imediato pós-guerra, mas o Oriente Médio superou a América Latina até o final da Guerra Fria e, mais recentemente, a África fez o mesmo, deixando a região latino-americana no último lugar da tabela no que diz respeito a suas capacidades nacionais.

Essas tendências demográficas e de capacidade nacional também se refletem na dimensão econômica. Apresentamos no gráfico 3 um indicador que retrata essa dinâmica: o volume de comércio. Utilizando sempre dados do Correlates of War para assegurar a consistência da amostra, indicamos aqui o total de importações e exportações correspondentes a cada região em dólares correntes4.


Fonte: cinc v5.0, Correlates of War5Nota: as cifras representam a fração das capacidades materiais no mundo correspondentes a cada região (excluídas as grandes potências). A cifra mais recente corresponde a 2012.

Como nos gráficos anteriores, constatamos que, ao longo de um século, a Ásia (mesmo sem considerar a China) consolidou uma tendência ascendente, ao passo que a América Latina perdeu duas posições e se encontra em uma tendência de declínio.

A relevância internacional da América Latina: indicadores de comportamento estatal

Outra abordagem da relevância internacional das regiões do mundo se concentra, mais que em fatores estruturais, no comportamento de seus Estados. Como exemplo, argumentou-se que uma região pode adquirir relevância 


Fonte: Trade Dataset v4.0, Correlates of War6Nota: as cifras de volume de comércio (importações mais exportações) estão calculadas em bilhões de dólares estadunidenses. A cifra mais recente corresponde a 2016.

por meio de sua instabilidade e da consequente probabilidade de gerar crises internacionais. A instabilidade interna da América Latina durante o século xx foi, por exemplo, um fator de atração para os eua7, e algo semelhante pode ser dito do Oriente Médio e da Ásia Central no século xxi.

Um indicador-chave dessa relevância negativa são as disputas militarizadas. Uma disputa militarizada é qualquer mobilização dos exércitos dos países que utilize ou ameace utilizar a força. Esses tipos de evento podem variar desde a simples mobilização de forças ou a captura de um navio pesqueiro até conflitos ou guerras conflagradas, o que permite captar todo tipo de militarização (por menor que seja) em qualquer região do planeta e desde o início do século xix.

Mostramos no gráfico 4 como a América Latina, uma região que produzia frequentemente violência interestatal, tem se tornado cada vez menos potente como fonte de ameaças à paz e à segurança internacionais. Nessa dimensão, a região percorreu todo o espectro de uma zona de guerra a uma zona de paz8.


Fonte: mid v5.0, Correlates of War9Nota: as cifras correspondem ao número de disputas militarizadas na região.

Pode-se argumentar que isso é uma vantagem; que, como escrevemos em outro lugar, convém estar fora do cardápio internacional10. É possível especular também que essa perda de relevância «como problema» poderia conduzir a uma maior relevância da América Latina «como solução» mediante um desempenho diplomático maior e de melhor qualidade. Entretanto, a experiência parece demonstrar o contrário. Foi há um século, precisamente quando a região era mais conflitiva, que os Estados latino-americanos souberam se colocar nas mesas mais relevantes da política internacional. Esse protagonismo foi possível, sobretudo, pelas proezas que lhe permitiram libertar-se do jugo colonial muito antes que a África, a Ásia ou o Oriente Médio. Longe de ter sido desperdiçada, essa importante conquista inicial foi consolidada por meio de uma diplomacia ofensiva que ampliou a influência da região no mundo. O primeiro indício de relevância pode ser identificado em Principios de derecho internacional (1837), em que Andrés Bello reconheceu precocemente a capacidade da região de contribuir para o direito internacional por meio de normas próprias. No que diz respeito ao princípio da não intervenção, por exemplo, a América Latina foi moldando as normas globais por meio de uma apropriação regional da Doutrina Monroe (1823) e suas progressivas extensões. A Doutrina Calvo (1868) condenou a ingerência de países terceiros para a proteção de seus cidadãos, o pretexto utilizado mais frequentemente para justificar várias invasões europeias no século xix. A Doutrina Drago (1902) estendeu essa proibição à cobrança coercitiva de dívidas, e a Doutrina Carranza (1917), seguida da Doutrina Estrada (1930), fechou as portas para intervenções justificadas na ilegitimidade de origem dos governos ou sua falta de reconhecimento internacional. A região foi capaz de impor essas normas aos eua – que na Conferência Pan-Americana de 1933, realizada em Montevidéu, mudou a política de intervenção pela da «boa vizinhança» – e ao mundo.

Outro exemplo é o princípio da integridade territorial. A norma uti possidetis [usarás o que possuis], segundo a qual os novos Estados devem herdar os limites administrativos de suas potências coloniais, também se consolidou na América Latina e foi então exportada para o mundo todo. Ainda que o uti possidetis tenha surgido de maneira natural e devido às circunstâncias, as diplomacias latino-americanas conseguiram impor diversas formas de resolução de conflitos territoriais. Na Conferência Pan-Americana de 1889, realizada em Washington, a América Latina impôs normas revolucionárias sobre a soberania territorial, a conciliação e a arbitragem compulsória que seriam adotadas pela Convenção da Haia (1889). Talvez o Tratado Antibélico de 1933 – também conhecido como o Pacto Saavedra Lamas e que proibiu definitivamente a resolução de conflitos territoriais pelo uso da força – seja o melhor exemplo das conquistas obtidas pela diplomacia latino-americana nessa era. Ele foi ratificado por nações da América e da Europa, e representou o tratado mais ambicioso nessa matéria antes da Organização das Nações Unidas (onu).

Contudo, as ambições diplomáticas da América Latina seriam prejudicadas por dois processos: a Segunda Guerra Mundial e a descolonização de outras regiões. Por não participar do primeiro desses eventos, a divisão de poder nas instituições da ordem do pós-guerra excluiu a região em benefício de outros atores. Por sua vez, o processo de descolonização trouxe à cena novos atores de peso em outras regiões.

É possível observar essa tendência na importância relativa da diplomacia latino-americana em termos de número de embaixadas e participação em organismos multilaterais. No gráfico 5, mostramos a quantidade de embaixadas que cada região possuía no exterior, tanto dentro como fora da região. A trajetória declinante da América Latina é tão impressionante como a que evidenciamos em suas disputas militarizadas: de uma das regiões com mais embaixadas (197) no final do século xix, equiparando-se quase à Europa (259), ela passou a ser atualmente a região com menos embaixadas do mundo.

O ponto de inflexão, como em tantos outros aspectos, se encontra nos anos da descolonização. No entanto, é necessário refletir sobre as razões pelas quais a América Latina não investiu para se manter no mesmo nível que a Europa e honrar sua tradição diplomática. Em nossa interpretação, um fator central foi a mudança de mentalidade produzida após o final da Segunda Guerra Mundial, que passou das glórias da era Genaro Estrada e Carlos Saavedra Lamas para uma posição defensiva. A ideia de preservar certa autonomia regional que floresceu durante esse período se contrastava com a expansão de espaços de autonomia que a geração anterior havia conquistado a partir de uma diplomacia ativa e criadora de direito internacional11. O conceito de preservação de autonomia foi reflexo da perda de relevância que a região já experimentava na época.

Com a grande diplomacia de outrora para outra de caráter defensivo, a maioria dos países latino-americanos buscou se alinhar mais ou menos diretamente com os eua na Guerra Fria, com exceção de Cuba e de outras tentativas fracassadas de alinhamento com Moscou ou de não alinhamento. Além disso, os custos da autonomia foram crescentes e levaram a um novo debate entre a resignação12 e a perseverança13 no pós-Guerra Fria. A última epopeia que


Fonte: Diplomatic Exchange Dataset, Correlates of War14Nota: as cifras correspondem ao número total de embaixadas dos países da região. A cifra mais recente corresponde a 2006.

tentou ampliar as margens de autonomia a partir da participação em organismos multilaterais e da diversificação de alianças foi protagonizada pelo Brasil15, já desvinculado da região16, e acabou demonstrando seus enormes custos17. Quando vista no longo prazo, a história da diplomacia latino-americana mostra, portanto, um entrincheiramento progressivo. 

Outra arena na qual a América Latina perdeu relevância é a participação em organizações intergovernamentais, embora tenham matizado esse declínio a tradição do multilateralismo e a fortaleza do sistema interamericano, assim como uma proliferação de organizações regionais e sub-regionais superior à da Ásia e do Oriente Médio. Mostramos no gráfico 6 como a participação da América Latina em organismos internacionais, que alcançava níveis europeus até 1929, ficou relegada em relação à África e à Europa.

Fonte: International Organizations v3.0, Correlates of War18Nota: número de organizações internacionais das quais os países da região participam em qualquer qualidade (membros plenos, associados ou observadores). A cifra mais recente corresponde a 2014.

Está claro que os números referentes à associação se encontram inflados pelos novos Estados que surgiram na África em decorrência da descolonização, o que explica o salto na posição desse continente entre 1959 e 1989. O uso de frequências padronizadas pelo número de países faria sentido nessas comparações. Entretanto, também é importante considerar os números totais, pois eles refletem a importância relativa de blocos regionais dentro das organizações internacionais.

A atualidade e suas implicações

A crise da globalização colocou em moda dois conceitos: a dissociação e a regionalização. O argumento da dissociação é que os eua e a China estão dividindo o mundo em esferas de influência, fundamentalmente na dimensão tecnológico-digital. O argumento da regionalização é que a necessidade de reduzir custos, que deu lugar à criação de cadeias globais de valor mediante o off-shoring, está cedendo diante da necessidade de reduzir riscos, e isso acaba por promover as abordagens de on-shoring, near-shoring ou re-shoring. Esse movimento em que as fábricas voltam para casa – ou para perto de casa – vale para as três regiões desenvolvidas, mas não para as periféricas. Assim, ao mesmo tempo em que aumenta na América do Norte, Europa e Ásia-Pacífico, a regionalização diminui na América Latina, África e Oriente Médio, onde a dinâmica centrífuga é a regra. Para demonstrar essa realidade, basta olhar para o Brasil: a participação da China em suas exportações aumentou de 4% em 2002 para 26% em 2018 e aproximadamente 40% em 2020. Já suas exportações para a Argentina caíram para 4% em 2020.

O colapso da interdependência intrarregional foi acompanhado pela redução, igualmente abrupta, da coordenação diplomática. Argentina, Brasil e México integram o g-20 desde sua fundação, mas jamais buscaram construir uma agenda ou posição comum. A falta de sintonia se manifestou em outras organizações internacionais, tanto nos fracassos como nos triunfos. Em 2005, o brasileiro Luiz Felipe de Seixas Corrêa perdeu a eleição para a direção da Organização Mundial do Comércio (omc) quando a Argentina decidiu apoiar o candidato uruguaio (que, diga-se de passagem, também perdeu). Em 2017, o brasileiro Roberto Azevêdo ganhou a eleição para o mesmo cargo ainda que o México tenha votado em contrário, o que ratificava que o Brasil saía para o mundo apesar da região, e não graças a ela19. Em 2020, os desentendimentos intrarregionais fizeram com que, pela primeira vez desde sua criação e contra a tradição, os eua impusessem um de seus cidadãos como presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (bid).

Com poucas exceções, as organizações regionais latino-americanas cultivam a falta de coordenação e efetividade. A União das Nações Sul-Americanas (Unasul), que durante uma década se gabou de concertar as políticas de saúde e até mesmo de defesa de seus Estados membros, se dissolveu por uma sucessão de deserções entre 2018 e 2020. O Mercado Comum do Sul (Mercosul), que depois de 20 anos de negociações chegou a um acordo político com a União Europeia em 2019, mantém estruturas de regulação comercial anteriores ao lançamento público da World Wide Web: 30 anos depois, seus tratados ignoram a existência do comércio eletrônico. Mas até mesmo o acordo com a ue enfrenta dificuldades para a assinatura, e sua ratificação é ainda mais incerta.Durante a segunda metade do século xx, a América Latina foi para os eua uma fonte de insumos e um campo de batalha. Fonte de insumos, porque vinha da região boa parte dos hidrocarbonetos e da mão de obra necessária para economia do país norte-americano, além de quase toda droga consumida por seus cidadãos. Campo de batalha, porque também era travada na região a disputa com a União Soviética pelo domínio mundial. Em 2020, ambas as áreas de interação parecem ter se esgotado.

O apogeu da América Latina como fonte de insumos reside em seu passado. Graças às novas tecnologias, os eua oscilam entre a autossuficiência e a exportação de petróleo, tornando primeiro o México e, depois, a Venezuela dispensáveis no campo energético. Por sua vez, as migrações deixaram de ser um recurso econômico para se tornar um problema político, o que faz a região se transformar de cobiçada a indesejável. Finalmente, e como ocorre com o petróleo, os eua se aproximam da autossuficiência para sua demanda por narcóticos graças à produção sintética, à legalização da cannabis e à proliferação de opiáceos, que foram substituindo progressiva e imperialmente a cocaína nuestramericana.

Como campo de batalha, a América Latina também ostenta um grande passado. Historicamente, Washington interveio de forma aberta ou encoberta a cada vez que uma potência extrarregional tentava ganhar influência em seu quintal. Mas contra a China a intervenção direta é desnecessária, pois não há tropas no terreno, e a indireta é reduzida porque o dragão não pisa em calos. Os estudos mostram que, em contraste com a Rússia e outras potências desafiantes, a China só avança na região quando os eua se retraem. Em outras palavras, ela ocupa vazios; não os provoca20. Sua construção geopolítica regional é de base mais econômica que militar, e sua concepção do tempo lhe permite o luxo da paciência. Apesar das incursões chinesas na área de telecomunicações, o contraste com outras regiões é abissal. Somente a título de exemplo, nove dos 14 países que ainda mantêm relações diplomáticas com Taiwan – em aberto desafio a Pequim – estão na América Latina e no Caribe.

Este artigo honra a intuição de Carlos Escudé, segundo a qual os Estados de regiões periféricas como a América Latina devem desenhar sua política exterior a partir de uma avaliação realista de suas circunstâncias. Destaquemos uma vez mais que a irrelevância da região é relativa: aos olhos das potências, a América Latina não é invisível, mas sim menos atraente – do que antes e do que outras regiões – e menos ameaçadora. Dado que fatores estruturais como a geografia e a demografia são persistentes, as chances de reduzir a irrelevância se concentram em fatores contingentes como a inovação e a produtividade. Se alguma vez a América Latina voltar a ganhar protagonismo internacional, não será por seus exércitos, mas por aqueles que lhe deram seus prêmios Nobel: cientistas, diplomatas e intelectuais, gigantes em miniatura que irrompem do galinheiro. Produzir esses gênios requer educação e uma meritocracia baseada na igualdade de oportunidades. Nisso, Serrat tinha razão: sem utopia, a vida seria um ensaio para a morte. Contra os funcionários da negociação de sonhos, partidários de capar o porco para que engorde, a América Latina ainda conta com o remédio da democracia.


Nota: a versão original deste artigo foi publicada em espanhol em Nueva Sociedad No 291, 1-2/2021, disponível em www.nuso.org . Tradução de Luiz Barucke.

  • 1.

    J. David Singer, Stuart Bremer e John Stuckey: «Capability Distribution, Uncertainty, and Major Power War, 1820-1965» em Bruce Russett (ed.): Peace, War, and Numbers, Sage, Beverly Hills, 1972.

  • 2.

    Lembremos que nossa definição de Europa em 1898 e 1929 não considera a Alemanha, Grã-Bretanha, França, Rússia e suas respectivas colônias, mas inclui a Alemanha, Grã-Bretanha e França a partir do final da Segunda Guerra Mundial.

  • 3.

    J.D. Singer, S. Bremer e J. Stuckey: op. cit.

  • 4.

    Katherine Barbieri e Omar M.G. Keshk: «Correlates of War Project Trade Data Set Codebook, Version 4.0», 2016, disponível em http://correlatesofwar.org.

  • 5.

    Ibid.

  • 6.

    Ibid.

  • 7.

    Roberto Russell e Fabián Calle: «La ‘periferia turbulenta’ como factor de la expansión de los intereses de seguridad de eua en América Latina», 2008, disponível em Programa Interuniversitario de Historia Política, http://historiapolitica.com/datos/biblioteca/russell1.pdf.

  • 8.

    Kalevi J. Holsti: War, the State, and the State of War, Cambridge up, Cambridge, 1996; L. Schenoni: «Bringing War Back in: Victory and State Formation in Latin America» em American Journal of Political Science, 10/2020.

  • 9.

    Glenn Palmer, Roseanne W. McManus, Vito D’Orazio, Michael R. Kenwick, Mikaela Karstens, Chase Bloch, Nick Dietrich, Kayla Kahn, Kellan Ritter e Michael J. Soules: «The mid5 Dataset, 2011-2014: Procedures, Coding Rules, and Description», documento de trabalho, 2020.

  • 10.

    A. Malamud e L.L. Schenoni: «Latin America is Off the Global Stage, and that’s ok» em Foreign Policy, 10/9/2020.

  • 11.

    Juan Carlos Puig: Doctrinas internacionales y autonomía latinoamericana, Instituto de Altos Estudios de América Latina, Caracas, 1980.

  • 12.

    Carlos Escudé: El realismo de los Estados débiles, gel, Buenos Aires, 1995.

  • 13.

    R. Russell e Juan Tokatlian: Autonomía y neutralidad en la globalización, Capital Intelectual, Buenos Aires, 2010.

  • 14.

    Reşat Bayer: «Diplomatic Exchange Data Set, v2006.1», 2006, disponível em http://correlatesofwar.org.

  • 15.

    Gabriel Cepaluni e Tullo Vigevani: Brazilian Foreign Policy in Changing Times: The Quest for Autonomy from Sarney to Lula, Lexington, Lanham, 2009.

  • 16.

    A. Malamud e Júlio C. Rodriguez: «A caballo entre la región y el mundo: el dualismo creciente de la política exterior brasileña» em Desarrollo Económico vol. 54 No 212, 2014.

  • 17.

    L.L. Schenoni, Dawisson B. Lopes e Guilherme Casarões: «Myths of Multipolarity: The Sources of Brazilian Overexpansion», documento de trabalho, lse Global South Unit, 2019, disponível em http://eprints.lse.ac.uk/102579/1/gsu_lse_ideas_working_paper_no_1_2019.pdf.

  • 18.

    Jon C.W. Pevehouse, Timothy Nordstron, Roseanne W. McManus e Anne Spencer Jamison: «Tracking Organizations in the World: The Correlates of War igo Version 3.0 Datasets» em Journal of Peace Research vol. 57 No 3, 2019.

  • 19.

    A. Malamud: «A Leader without Followers? The Growing Divergence Between the Regional and Global Performance of Brazilian Foreign Policy» em Latin American Politics and Society vol. 53 No 3, 2011.

  • 20.

    Francisco Urdinez, Fernando Mouron, L.L. Schenoni e Amancio J. de Oliveira: «Chinese Economic Statecraft and us Hegemony in Latin America: An Empirical Analysis, 2003-2014» em Latin American Politics and Society vol. 58 No 4, 2016.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad 2021, Agosto - Setembro 2021, ISSN: 0251-3552


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