Tema central
NUSO Nº 2021 / Agosto - Setembro 2021

Prosul: integração ou revanche ideológica?

O Fórum para o Progresso da América do Sul (Prosul) procurou substituir a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) em uma vertente  mais conservadora. No entanto, o resultado é muito pouco significativo. E a falta de coordenação e de ambição integradora é ainda mais clara no contexto da pandemia de covid-19, das respostas sanitárias e da competição mundial pelas vacinas. 

Prosul: integração ou revanche ideológica?

O primeiro anúncio da constituição do Fórum para o Progresso da América do Sul (Prosul) foi feito pelo presidente da Colômbia, Iván Duque, em 14 de janeiro de 2019. Sua criação formal ocorreu em 22 de março daquele ano em Santiago, durante um encontro de presidentes convocado por Sebastián Piñera. São oito os países membros: Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Guiana, Paraguai e Peru. A Bolívia se limitou à condição de país observador e o Uruguai, à de simples convidado. A Venezuela de Nicolás Maduro foi excluída. De acordo com a declaração inicial de Santiago, o Prosul surge como «mecanismo de coordenação sul-americana de políticas públicas em defesa da democracia, da independência de poderes, da economia de mercado, da agenda social (...)». Para sua incorporação, foram estabelecidos dois requisitos básicos: plena vigência do Estado de direito e pleno respeito pelas liberdades e pelos direitos humanos. Segundo a mesma declaração, o Prosul deve concentrar seu trabalho em seis áreas específicas: infraestrutura, energia, saúde, defesa, segurança e combate ao crime, e gestão de riscos e desastres. A pedido da Presidência pro tempore do Chile, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (bid), por meio do Instituto para a Integração da América Latina e do Caribe (Intal), oferece assessoramento estratégico e apoio técnico para o desenvolvimento das agendas dos grupos de trabalho e das plataformas tecnológicas do fórum. Os principais promotores do Prosul foram, sem dúvida, os presidentes Piñera e Duque. Como consequência, não é por acaso que sua criação tenha tido Santiago como sede e Piñera encabeçando a primeira Presidência pro tempore, enquanto a segunda é atualmente exercida pelo mandatário colombiano. Em especial para Piñera, o Prosul constituía uma plataforma útil para se posicionar internacionalmente como o principal líder sul-americano. 2019 seria decisivo na construção dessa projeção internacional. Por um lado, ficou acertado que o Chile sediaria a Conferência das Nações Unida sobre Mudança Climática (cop25). Além disso, o país devia ser a sede da reunião anual do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (apec, na sigla em inglês). Entre os meses de novembro e dezembro se reuniriam os principais líderes mundiais. Era uma oportunidade única para projetar uma liderança internacional em uma região marcada pelo ocaso de lideranças progressistas que haviam tido grande presença no cenário internacional durante o período anterior. Nos meses prévios, Piñera chegara a afirmar que a reunião da apec seria o palco no qual os presidentes Donald Trump e Xi Jinping assinariam uma trégua na guerra comercial entre Estados Unidos e China. A foto de Piñera entre Xi e Trump ilustraria a ascensão do presidente chileno ao estrelato internacional. Em 9 de outubro, Piñera ainda podia declarar que o «Chile é um verdadeiro oásis em uma América Latina convulsionada». Poucos dias depois, em 18 de outubro, explodiu uma revolta social sem precedentes. As mobilizações teriam seu momento culminante com a marcha de 25 de outubro, da qual milhões de pessoas participaram em Santiago e nas principais capitais regionais. Essa marcha é unanimemente considerada a maior da história do país. Frente à magnitude e à profundidade do questionamento social, o governo não teve mais remédio que anunciar, em 30 de outubro, que o Chile já não seria sede das reuniões da apec e da cop25, afirmando que sua prioridade seria se concentrar em dar solução às demandas da população para superar a grave crise social. A explosão frustrou brutalmente o afã de projeção internacional de Piñera. De chefe de Estado de um país modelo, ele se transformou em um presidente assediado pelos quatro cantos e cujos níveis de rejeição não deixariam de cair até atingir o patamar recorde de apenas um dígito1. Depois viria a pandemia de covid-19. O governo aproveitou a situação para tentar recuperar pontos com a população, mobilizando o que considerava sua grande capacidade de gestão. Teve sucesso em seu esforço para evitar o colapso hospitalar por meio de uma conversão maciça de leitos e da aquisição de ventiladores mecânicos. No entanto, ignorou o combate ao vírus fora dos hospitais com testes, rastreabilidade e isolamento. Como resultado, os anúncios de que o «Chile está bem preparado para enfrentar a pandemia» foram cruelmente desmentidos pela realidade. No final de maio de 2020, o Chile figurava entre os 10 países com maior número de contagiados e mortos por milhão de habitantes.

Um balanço pouco significativo

O Prosul está perto de completar dois anos de funcionamento. Em dezembro passado, no momento de entregar a Presidência pro tempore do fórum, Piñera apresentou o «Relatório de Gestão 2019-2020»2. Em sua introdução, o documento mencionava «avanços significativos» e «contribuição relevante». Com respeito à pandemia, fazia referência a «respostas oportunas para mitigar os efeitos multidimensionais destas crises» e a realização de quatro reuniões presidenciais (virtuais) que «permitiram coordenar ações para avançar e superar juntos a pandemia».Alguns críticos acérrimos do Prosul afirmaram, ironicamente, que este não é mais do que um grupo de WhatsApp entre presidentes. Trata-se de um exagero. O «Relatório de Gestão» entrega informações sobre as quatro reuniões presidenciais, a formação dos diversos grupos de trabalho e a formulação de planos de ação. Percebe-se aqui a contribuição técnica de instituições de prestígio como o bid e o Intal. No entanto, uma leitura exaustiva do documento, inclusive benevolente, não permite identificar em nenhuma das áreas prioritárias algum resultado concreto relevante. Além disso, na declaração assinada pelos presidentes Piñera e Duque no momento da entrega da Presidência pro tempore, enfatizou-se «a coordenação em trabalhos de meio ambiente e cooperação para alcançar um acesso universal à vacina contra a covid-19».Na realidade, não foram registrados resultados significativos em nenhuma dessas duas áreas. No âmbito do meio ambiente, ao mesmo tempo em que o Chile exercia a Presidência do fórum, o governo de Piñera ratificava sua decisão de não assinar o Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe, mais conhecido como Acordo de Escazú. A decisão do governo do Chile viola uma longa tradição da política exterior chilena em termos de apoio ao multilateralismo, sendo particularmente grave porque o Chile foi um dos promotores do acordo, juntamente com a Costa Rica. É bem sabido que foram as pressões empresariais que levaram a uma decisão que afeta seriamente o prestígio internacional e a credibilidade do Chile quanto à sua disposição de cumprir as normas ambientais básicas. Neste sentido, constitui uma grave exceção. É praticamente o único país da região que não assinou esse acordo, dando como pretexto que este «contém obrigações ambíguas». Os demais países que integram o Prosul assinaram o acordo. Ainda falta saber quantos o ratificaram em seus respectivos Parlamentos.Por outro lado, as «ações comuns» para enfrentar a pandemia são inexistentes. No âmbito da saúde, cada país tem tido que utilizar seus próprios meios. Não há registro de nenhuma cooperação relevante entre países. Em particular, no caso do acesso às vacinas, todas as informações disponíveis mostram que são os países os que, de maneira estritamente individual e com muitas dificuldades, estão buscando garantir o acesso de suas populações. Assim, por exemplo, o Chile tentou se garantir estabelecendo acordos com todos os principais fabricantes, fez um acordo com a empresa chinesa Sinovac e também comprou vacinas à Pfizer/BioNTech. Por sua vez, a Argentina foi um dos primeiros países a acordar a compra de vacinas russas Sputnik v em meio à polêmica sobre sua eficácia e transparência. Não há indícios de ações comuns para comprar insumos médicos. No âmbito financeiro internacional, cada país procurou também resolver unilateralmente suas necessidades de crédito, e não há notícias de avanços significativos em outras áreas anunciadas pelos presidentes, como a livre circulação de mercadorias, a abertura de fronteiras e a troca de conhecimentos epidemiológicos.

Muita improvisação, grandes silêncios

Em matéria de improvisação e desatino, a Operação Cúcuta entrará para os anais dos vexames internacionais. Embora tenha sido forjada dentro do Grupo de Lima3, a maioria dos presidentes não compareceu a essa localidade colombiana na fronteira com a Venezuela. Nem Jair Bolsonaro, nem Mauricio Macri, nem Martín Vizcarra apareceram por lá. A operação foi uma espécie de pré-estreia internacional do que a Colômbia e o Chile queriam que o Prosul fosse. Realizou-se em 22 de fevereiro de 2019. Sim, o Prosul ainda não existia formalmente, mas sua criação já havia sido anunciada pelo presidente colombiano. A ideia era acompanhar a entrada de ajuda humanitária desde a fronteira entre Colômbia e Venezuela, provocando um impacto tão forte no Exército Bolivariano que precipitaria a queda de Nicolás Maduro. Juan Guaidó, reconhecido por meia centena de países como «presidente interino», poderia assim fazer sua entrada triunfal na Venezuela acompanhado por Duque e Piñera, além do paraguaio Mario Abdo Benítez. Mas, além de não ocorrer a esperada deserção maciça nas fileiras do exército, nem sequer foi possível enviar a ajuda. Segundo as informações da imprensa, não mais do que 60 soldados venezuelanos procuraram asilo na Colômbia. No fim das contas, Maduro, de quem se dizia que «tinha os dias contados», acabou fortalecido, enquanto os protagonistas da operação precisaram dar muitas explicações. Ainda mais grave que a improvisação da Operação Cúcuta foi o silêncio sobre aquilo que, em sentido estrito, foi um golpe de Estado na Bolívia. Este ocorreu em 10 de novembro de 2019, após várias semanas de protestos dirigidos pelas forças da oposição contra o governo de Evo Morales, que acusavam de ter cometido fraude eleitoral. As estatísticas oficiais indicam 32 mortos e 715 feridos nas manifestações e nos enfrentamentos, que terminaram com a «sugestão» de renúncia de Morales formulada nem mais nem menos que por Williams Kaliman, comandante-em-chefe das Forças Armadas. Os resultados eleitorais foram objetados pela oposição com base no relatório da Organização de Estados Americanos (oea), que apontou «irregularidades» no processo. A acusação de fraude foi facilitada pelo fato de que a apuração anunciada na noite da eleição indicava 45,28% dos votos para Morales e 38,16% para Carlos Mesa, resultado que, se fosse mantido, obrigava um segundo turno, que a oposição unida esperava poder ganhar. No entanto, essa contagem correspondia a apenas 84% dos eleitores. Faltava apurar os votos restantes, essencialmente rurais e esmagadoramente favoráveis a Morales. No final, de acordo com os resultados oficiais, Morales venceu a eleição do domingo 20 de outubro com 47% dos votos e pouco mais de 10 pontos de diferença em relação a Mesa, que ficou em segundo lugar4. Mas a suspeita de fraude havia se difundido amplamente, somando-se a ela a acusação de ilegalidade da candidatura de Morales em virtude do resultado adverso do referendo de fevereiro de 2016. Na ocasião, a população foi consultada quanto à possibilidade de sua reeleição, e o «Não» ganhou por pequena diferença. Em novembro de 2019, a senadora Jeanine Áñez foi designada «presidenta interina», mas o Movimento ao Socialismo (mas) retomou o poder em outubro passado com mais de 55% dos votos. O silêncio em relação aos acontecimentos na Bolívia é o mais grave, mas não o único. O Prosul também não disse nada sobre as graves violações dos direitos humanos cometidas recentemente tanto no Chile como na Colômbia. No caso do Chile, quatro relatórios internacionais documentaram a prática de graves violações dos direitos humanos5. O relatório do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos (acnudh) não deixa dúvidas. Nas conclusões, afirma:«Com base nas informações reunidas pelo acnudh, existem razões bem fundamentadas para afirmar que, a partir de 18 de outubro, ocorreu um elevado número de graves violações dos direitos humanos. Essas violações incluem o uso excessivo ou desnecessário da força, que levou à privação arbitrária da vida e a lesões, tortura e maus-tratos, violência sexual e detenções arbitrárias». E acrescenta: «Nesse contexto, o acnudh pôde observar que certas violações dos direitos humanos, em particular o uso indevido de armas menos letais e os maus-tratos, são reiteradas no tempo, no espaço e com relação a quem são os supostos perpetradores e as vítimas». O documento ainda enfatiza: «A gestão das manifestações por parte dos Carabineros foi realizada de maneira fundamentalmente repressiva. Os Carabineros falharam, de forma reiterada, em cumprir o dever de distinguir entre manifestantes violentos e pessoas que se manifestavam pacificamente».Por outro lado, na Colômbia quatro anos já se passaram desde a assinatura dos acordos de paz entre o governo e a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (farc). No entanto, a violência contra dirigentes sociais, ativistas de direitos humanos, camponeses e indígenas continua presente. Somente em 2020, foram registrados 255 assassinatos e 66 massacres. Além disso, estima-se que a mesma sorte tiveram 244 ex-combatentes desmobilizados em virtude dos acordos de paz6. Os relatórios do acnudh sobre a Colômbia são categóricos. Em seu informe de fevereiro de 2020, o organismo

continuou observando a persistência de altos níveis de violência que geraram graves violações dos direitos humanos. Especialmente preocupantes foram as agressões às pessoas defensoras de direitos humanos e aos povos indígenas, e o aumento dos casos de supostas privações arbitrárias da vida, assim como graves violações de direitos humanos cometidas contra meninas e meninos no contexto da violência e do conflito armado. O acnudh reiterou a necessidade de abordar as causas estruturais que geram violência, especialmente nas zonas rurais, e que se relacionam com a falta de acesso aos direitos humanos.

Também observou um aumento da resposta militar a situações de violência e insegurança. Embora existam protocolos, normativas e políticas públicas que regulam a participação do exército em situações relacionadas com a segurança cidadã, estes não foram aplicados completamente em diferentes contextos de algumas zonas rurais de Arauca, Antioquia, Caquetá, Cauca, Córdoba, Cesar, Chocó, Meta, Nariño e Norte de Santander, e inclusive em centros urbanos como Convención, Medellín, Santa Marta e Valledupar. Nesses lugares, o exército realizou operações antinarcóticos e de prevenção e processamento de delitos, para os quais o treinamento, o equipamento e a natureza das funções militares são inapropriados. Segundo dados da polícia, em vários municípios de Arauca, Catatumbo, Norte del Cauca e Sur de Córdoba o número de homicídios aumentou, apesar da maior presença militar.7

Embora o pleno respeito pelos direitos humanos tenha sido definido como condição imprescindível para ser parte do Prosul, o fórum ignorou as graves violações no Chile e na Colômbia, demonstrando assim que, mais do que uma instância autônoma e objetiva de países, é um espaço a serviço dos interesses políticos de seus fundadores: os presidentes Piñera e Duque. Os silêncios em relação à contingência política no Equador têm o mesmo viés. Faltando pouco para as eleições presidenciais do próximo 7 de fevereiro, o governo de Lenín Moreno se empenhou profundamente em impedir a participação do ex-presidente Rafael Correa e dos integrantes de seu movimento. Em um caso típico de lawfare, isto é, de manipulação da Justiça com fins políticos, conseguiu-se que Correa fosse impedido de se candidatar, primeiro como presidente e depois como vice. O governo também tentou, finalmente sem sucesso, proibir a participação da chapa liderada por Andrés Arauz. As pesquisas mostram que esse binômio é altamente competitivo, motivo pelo qual tentou-se de todas as formas evitar sua participação. Tudo isso frente, novamente, ao silêncio cúmplice das autoridades do Prosul. Esses silêncios não causam surpresa. Fazem parte de um padrão de conduta unilateral de mais longa data.Alinhados com os eua no combate contra o governo Maduro na Venezuela incentivado pelo chamado Grupo de Lima, os fundadores do Prosul, no entanto, fecharam os olhos para a grosseira instrumentalização do Parlamento e da Justiça no Brasil para provocar a destituição de Dilma Rousseff e a inabilitação de Luiz Inácio Lula da Silva como candidato, o que terminou abrindo caminho para a eleição do ultradireitista Jair Bolsonaro como presidente do Brasil.

O Prosul como revanche ideológica

Com razão, o ex-presidente da Colômbia e ex-secretário-geral da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) Ernesto Samper considera o Prosul uma espécie de «revanche ideológica»8. Na lógica das forças conservadoras, o declínio dos governos progressistas que hegemonizaram a política sul-americana durante a primeira década dos anos 2000 seria seguido por um novo ciclo de governos de direita de inspiração neoliberal e alinhados com os eua9.A Unasul surgiu em 2008 com a assinatura de um Tratado Constitutivo que entrou em vigor em 2011 com o objetivo de «construir uma identidade e cidadania sul-americana e desenvolver um espaço regional integrado». Era formada pelos 12 países da América do Sul. No entanto, desempenharam um papel determinante em sua concepção os presidentes Lula, Cristina Fernández, Evo Morales, Hugo Chávez e Rafael Correa. Durante seus seis anos de funcionamento, a Unasul conseguiu realizar um conjunto de ações que mostram um balanço mais do que razoável, especialmente no âmbito da concertação política. Foi assim que a Unasul contribuiu para a gestação do Acordo de Paz na Colômbia. E, consistente com sua vocação democrática, condenou o golpe de Estado parlamentar que, em aberta violação do direito de defesa, destituiu em um julgamento sumário o presidente Fernando Lugo, em junho de 2012, e suspendeu a participação do Paraguai no bloco. Esta foi restabelecida após as eleições presidenciais de abril de 2013, vencidas pelo representante do Partido Colorado Horacio Cartes. No âmbito da integração regional, uma contribuição significativa da Unasul foi a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (iirsa). Esta buscava incentivar «uma revisão das políticas em matéria de serviços de infraestrutura e transporte e a adoção de um novo paradigma que incorpore uma visão integral e sustentável». Tudo isto por meio da «melhoria e do fortalecimento da institucionalidade na América do Sul e no Caribe, aumentando a coordenação e a coerência no próprio Estado e consolidando a relação com o setor privado através de marcos regulatórios modernos»10. Trata-se de uma tarefa em grande medida pendente em um subcontinente especialmente pouco integrado do ponto de vista da infraestrutura física, para a qual será útil retomar os avanços realizados no contexto da iirsa.Foi também mérito da Unasul a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano, que contribuiu de forma significativa para a consolidação da América do Sul como zona de paz e a geração de consensos para a cooperação regional em defesa. No entanto, a Unasul não pôde superar as definições ideológicas de seus inspiradores para se transformar em uma instituição capaz de sobreviver às mudanças políticas. Sua progressiva ideologização, somada ao direito de veto que cada país possuía, terminou paralisando-a. Diante de sucessivos vetos, a Unasul ficou acéfala em janeiro de 2017, sem poder eleger um novo secretário-geral em substituição a Samper. Os governos conservadores aproveitaram essa situação para decretar seu fim e sua substituição pelo Prosul. O princípio do direito de veto havia sido imposto pelo ex-presidente colombiano Álvaro Uribe como condição para a incorporação de seu país à organização. Nos últimos anos, seis países suspenderam sua participação na Unasul: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador e Paraguai. Já em dezembro de 2018, o chanceler colombiano havia declarado que a «Unasul é um cadáver insepulto»11.Tendo em vista os últimos acontecimentos, o futuro está em aberto. No Prosul já não está Mauricio Macri à frente da Presidência argentina. Tampouco está Vizcarra no Peru e, dentro de algumas semanas, Lenín Moreno no Equador. Por sua vez, a eleição de Luis Arce Catacora na Bolívia não permite que as forças conservadoras continuem contando com essa nação andina, e em pouco mais de um ano Piñera também terá deixado a Presidência. Assim, parece claro que o Prosul não está destinado a fazer história. Retrospectivamente, será mais um episódio (talvez só um capítulo de pouca importância) na longa historia de frustrações do processo de integração da região. Em um contexto tão turbulento de crise sanitária, econômica e social, em um continente especialmente atingido pela pandemia, a integração é mais necessária do que nunca. Entretanto, nunca estivemos tão divididos e desintegrados. A situação atual apenas antecipa estancamento econômico, instabilidade política, insatisfação social e marginalidade internacional. É preciso repensar a integração, buscar novas vias e dotá-la de sustentação política e social, de modo que não seja simplesmente uma utopia tecnocrática, visionária mas inviável. Deve ser uma integração que resista aos vaivéns ideológicos e torne possível pensar a médio e longo prazos sem sacrificar tudo pelas urgências imediatas.A integração da América do Sul é um projeto que tem sentido. Apesar de sua diversidade, os países que a compõem possuem muitas características em comum. Os governos progressistas mostraram que era possível uma concertação política para enfrentar as ameaças à democracia. Fracassaram, porém, no plano da integração econômica e comercial. Aproveitaram a explosão das matérias-primas para sustentar amplos processos de redistribuição para os setores menos favorecidos. Descuidaram, de todo modo, da necessidade de uma transformação em direção a uma maior diversificação e sofisticação da estrutura produtiva. Não só isso: durante seus governos, houve processos de desindustrialização que aprofundaram o caráter primário da oferta exportadora12. A integração sul-americana deve ser parte de um processo maior de integração do conjunto da América Latina. A Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), criada em fevereiro de 2010 e da qual fazem parte 32 países, é um projeto ambicioso que, no entanto, debilitou-se por falta de respaldo político. É preciso conceber novas formas de relançá-la. A América do Sul tem um papel importante a exercer nesse esforço. É claro que não será uma instância tão ideológica como o Prosul que poderá fazê-lo. Não será tampouco a reedição de uma Unasul na forma como a conhecemos. É preciso aprender com a experiência para construir instituições que possam estar acima dos interesses nacionais de curto prazo. Trata-se, em todo caso, de uma tarefa gigantesca das novas gerações de governantes que vierem depois destes anos de rumos políticos protagonizados pelos governos conservadores.Enquanto isso, duas ideias complementares podem permitir avançar nessa direção. Por um lado, afirmar uma posição de rigoroso não alinhamento ativo na confrontação que a China e os eua protagonizam pela hegemonia global13. Além de suas enormes diferenças políticas e ideológicas, nossos países poderiam se encontrar na prática de uma política internacional baseada nesses princípios. A subordinação a uma ou outra superpotência não será nunca um ponto de encontro. Por outro lado, no contexto das enormes exigências apresentadas pelo processo de reconstrução e reativação econômica, é possível pensar em construir uma proposta comum dos países da região em termos de financiamento e nova arquitetura financeira internacional, que permita preencher as enormes lacunas de recursos resultantes das disponibilidades atuais e das novas necessidades.

  • 1.

    Por exemplo, segundo a empresa Criteria, de reconhecida capacidade técnica, a aprovação de Piñera CAIU para 7%.

  • 2.

    Ministério das Relações Exteriores e Secretaria Geral da Presidência, Santiago, 12/2020.

  • 3.

    12 países americanos assinaram inicialmente a declaração: Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai e Peru. Posteriormente, uniram-se Guiana, Haiti, Santa Lúcia e Bolívia. O grupo contou também com o apoio de Barbados, eua, Granada e Jamaica. Seu propósito era concertar ações contra o governo de Nicolás Maduro.

  • 4.

    O sistema eleitoral boliviano estabelece que um presidente pode ser eleito no primeiro turno caso supere o limite de 40% dos votos e obtenha uma diferença de mais de 10 pontos em relação ao segundo candidato de maior votação.

  • 5.

    Tais relatórios foram realizados por Anistia Internacional, Human Rights Watch, Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos (ACNUDH) e Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

  • 6.

    Fórum Permanente de Política Exterior: «Colombia, no a la indiferencia», 18/12/2020.

  • 7.

    «El 2019, un año muy violento para los derechos humanos en Colombia» em Noticia.ONU, 26/2/2020.

  • 8.

    «Samper: el Prosur es un desquite ideológico» em Zoom, 1/4/2019.

  • 9.

    Para um balanço sobre os governos progressistas, v. C. Ominami (ed.): Claroscuros de los gobiernos progresistas, Catalonia, Santiago, 2017.

  • 10.

    Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal): «Unasur: infraestructura para la integración regional», 2012, disponível em www.cepal.org/es/publicaciones/3121-unasur-infraestructura-la-integracion-regional.

  • 11.

    Declarações à emissora La Voz del Cinaruco, 13/9/2018.

  • 12.

    Alicia Bárcena: «Integración y desintegración en América del Sur» em C. Ominami (ed.): op. cit.

  • 13.

    Carlos Fortín, Jorge Heine e C. Ominami: «El no alineamiento activo: un camino para América Latina» em Nueva Sociedad edição digital, 9/2020, www.nuso.org.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad 2021, Agosto - Setembro 2021, ISSN: 0251-3552


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