Tema central
NUSO Nº 2021 / Agosto - Setembro 2021

As políticas exteriores da América Latina em tempos de autonomia líquida

O debate político e acadêmico em torno da noção de autonomia iniciado na Guerra Fria volta a ganhar relevância, mas partindo de  diagnósticos e supostos diferentes. As políticas exteriores da América Latina sofrem hoje um duplo assédio sistêmico: os embates entre Vestfália e Mundialização, com processos de concentração e difusão do poder. Em um contexto no qual a região aprofunda sua dependência, as políticas exteriores deverão se preparar para cenários mais restritivos e adversos, fortalecendo as capacidades de resiliência diante de acontecimentos inesperados, mitigando riscos e aproveitando oportunidades.

As políticas exteriores da América Latina em tempos de autonomia líquida

Introdução

Na terceira década do século xxi, as políticas exteriores da América Latina se encontram submetidas a um duplo assédio sistêmico: a intensificação da disputa hegemônica entre os Estados Unidos e a China, com suas consequentes turbulências, e a aceleração de uma tendência global que caminha em direção ao caos e à entropia, com seus desdobramentos e incertezas críticas. A multiplicação e a transversalização dos riscos globais, assim como os desafios geopolíticos, geoeconômicos e geotecnológicos apresentados pela disputa sino-estadunidense, exigirão maiores capacidades de resiliência dos Estados-nação para se adaptarem e superarem cenários mais restritivos e adversos. Em um contexto de deterioração econômico-social e múltiplas crises nos países da região, esse jogo duplo introduz novas pressões e tensões nos espaços de autonomia.No final da segunda década do século xxi, o declínio relativo do poder estadunidense no hemisfério ocidental veio acompanhado de ameaça de uso da força, interferência militar, ruptura de consensos de pós-guerra e maior inclinação à imposição em detrimento da consulta e do respeito às decisões dos sócios. A novidade dessa transição hegemônica em relação às anteriores é a intensificação da rivalidade com a China, uma potência não ocidental em ascensão que desafia os eua nos campos econômico, financeiro, tecnológico e comercial. Embora não se saiba a duração do processo e se a China finalmente deslocará seu poder econômico para o campo militar com maior presença fora de suas fronteiras, um dos cenários plausíveis seria a elevação dos níveis de combatividade como consequência de uma maior assertividade e de um uso mais frequente da diplomacia coercitiva.Se hoje as narrativas de unidade latino-americana como Pátria Grande, Nossa América e Indoamérica se encontram em franco retrocesso perante um mosaico de realidades desagregadas sem vínculos com ações coletivas, estaríamos entrando em uma era de pós-autonomia? E, sendo assim, é possível continuar pensando em termos de instâncias regionais necessárias para preservar a autonomia? Faz-se necessário desarmar os marcos políticos que deram forma às concepções de autonomia e começar a desenhar os traços de novas experiências menos arraigadas em dogmas, utopias ou dicotomias, e mais realistas, graduais, reduzidas ou parciais, mas internacionalmente viáveis? Este artigo se propõe a refletir sobre esses questionamentos.

Um mundo de areias movediças

Para entender o sistema global contemporâneo, é necessário retornar à queda do Muro de Berlim em 1989. O mundo surgido com o pós-Guerra Fria era o mais parecido a um cosmos para Washington: liderança global inquestionável, primavera democrática liberal e auge da economia de mercado. O famoso «fim da História» era, na realidade, o ato de virar a página e um anúncio de futuro redentor sem contrapesos: a ideia de que era possível uma sociedade cosmopolita mundial e, consequentemente, uma maior confiança no futuro da paz e da democracia no mundo. No entanto, aquela transição trouxe consigo somente uma miragem de médio prazo, já que a aparente redução da incerteza mundial se assentava em excessivo otimismo das elites ocidentais sobre as oportunidades da globalização.A era da entropia na qual estão hoje imersos os Estados-nação é uma versão pessimista, em termos normativos e filosóficos, da famosa teoria da «interdependência complexa»1. O crescimento exponencial dos canais de contato transnacionais não é fonte exclusiva de benefícios, pois também multiplica as incertezas e transversaliza os riscos globais. Os riscos mais importantes em termos de impacto são ambientais: aquecimento global, falhas na ação climática, desastres naturais, perda de biodiversidade, desastres ambientais provocados pelos seres humanos e crise hídrica. A esses, somam-se os riscos geoeconômicos, geopolíticos, socioespaciais e geotecnológicos: fraude ou roubo de dados, ciberataques, falhas da governança global, crises alimentares, falta de planejamento urbano, armas de destruição em massa, migração forçada, fluxos financeiros ilícitos, crises financeiros e pandemias2. Supunha-se que a noção de risco era uma tentativa de regular o futuro; hoje, os desafios são do presente e do curto prazo, o que reduz o tempo disponível para a cooperação internacional e o desenho de políticas públicas destinadas a mitigá-los.O cenário atual se parece com uma contenda entre duas polaridades: de um lado, o mundo das interações entre Estados, ou Vestfália; do outro, o mundo da globalização e das interações transnacionais que vão além dos Estados, ou Mundialização. As tensões e contradições entre um processo de concentração do poder internacional que o primeiro implica e um processo de difusão desse mesmo poder que o segundo introduz são bem tangíveis. Vestfália dá destaque aos Estados-nação, às fronteiras, ao território, à soberania e ao controle dos fluxos transnacionais. Por sua vez, a Mundialização dilui a noção de fronteiras, deixando transparecer o papel dos atores não governamentais, as grandes corporações digitais, o sistema financeiro multinacional, as organizações criminosas e os movimentos sociais transnacionais de ambientalistas, feministas ou de direitos humanos, entre outros. Nesse contexto, assistimos a uma situação crítica na qual coexistem forças centrífugas e centrípetas da ordem internacional. A concorrência geopolítica e a globalização do capital aumentam as tensões e apresentam desafios de escalas macroscópica e microscópica à autonomia dos Estados-nação.

Uma região em queda livre

À medida que as mudanças sistêmicas ganham forma, consolida-se a tendência de perda de gravitação política da América Latina no mundo. Quando a Organização das Nações Unidas (onu) foi criada, em 1945, 20 dos 51 membros iniciais eram países latino-americanos. Hoje com 193 países membros, a dispersão do voto da região e o menor peso específico do Grupo Regional da América Latina e Caribe (grulac) reduzem ainda mais sua influência como bloco. Segundo o índice de poder militar do Global Firepower de 2006, Brasil, México e Argentina ocupavam, respectivamente, as posições 8, 19 e 33; em 2020, o Brasil se encontra na 10a posição, o México ocupa a 38a e a Argentina, a 43a posição3. No Soft Power Index, o Brasil se situou no 23o lugar em 2015, no 24o em 2016 e no 26o em 2019, ao passo que a Argentina se manteve na 30a colocação4. Presenciamos hoje um cenário politicamente fragmentado, no qual as iniciativas de integração regional, como o Mercado Comum do Sul (Mercosul), a Comunidade Andina de Nações (can), a Aliança do Pacífico (ap), a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (alba), a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) enfrentam situações de irrelevância, estagnação ou desmantelamento, segundo cada caso.Enquanto a região declina e perde peso político em Vestfália, é observada uma preocupante tendência à desinserção econômica na Mundialização. Nesse mundo, sobressai o acentuado declínio da participação da América Latina nas cadeias globais de valor. De uma participação de 12% no total de exportações mundiais em 1955, a região passou a 6% em 2016 e chegou a seu pior desempenho em 2018, quando apresentou 4,7% de participação5. Os pedidos de novas patentes tecnológicas provenientes da região equivaliam a 3% do total global em 2006, se reduziram a 2% em 2016 e chegaram à insignificante cifra de 0,62% em 20186. Os investimentos em pesquisa e desenvolvimento no transcurso de duas décadas se mantiveram estancados em uma média de 0,65% do pib7. A pandemia de covid-19 produzirá na região a maior contração econômica de sua história, tornando ainda mais difícil a reversão dessa trajetória declinante.Além disso, a impotência vivenciada pela região condiz com uma tendência persistente de desintegração e fragmentação política e econômica. O menor volume do mercado regional e a escassa participação nas cadeias de valor regionais são explicados pelo perfil de especialização produtiva e dos sócios comerciais predominantes dos países latino-americanos. A especialização se concentra em «cadeias curtas» (de poucos países) e de baixa complexidade econômica, com valor agregado escasso ou nulo, como as agroindustriais, nas quais grande parte das exportações é de bens finais ou intermediários que tendem a ser consumidos no país de destino, o que diminui a participação regional downstream ou em futuras exportações dos países que compram da região. As dinâmicas comerciais impulsionadas pela ascensão econômica da China (o maior sócio comercial da América do Sul, exceto para a Colômbia, o Equador e a Venezuela, que mantêm os eua nesse posto) reforçam a «primarização» ou a escassa diversificação das economias e aumentam os incentivos para buscar atalhos bilaterais fora dos espaços de convergência regionais8.Na terceira década do século xxi, os obstáculos à integração regional serão enormes; é a era da Quarta Revolução Industrial, na qual poucas potências tecnológicas e poucas empresas digitais terão um peso cada vez maior. A tendência à concentração de mercado e geográfica dos polos de inovação em tecnologias disruptivas é alarmante. A China e os eua detêm 90% das 70 principais plataformas digitais, 78% das patentes de inteligência artificial, 75% das patentes de tecnologia blockchain, 50% do gasto global de internet das coisas e 75% do mercado de computação na nuvem9. Se for consolidada a tendência regional de dependência tecnológica, aquisição de projetos de transferência de tecnologia «chave na mão» e falta de investimento em infraestrutura e desenvolvimento científico para a produção e a difusão de tecnologias disruptivas, ela estará já não em uma situação de periferia, mas de marginalidade na Mundialização.

Um tabuleiro de disputas

Para abordar a situação geopolítica regional, é preciso destacar uma mudança de grau e ritmo na política dos Estados-nação. A região passou de um sistema previsível e relativamente constante, com certos princípios de concertação interestatal e de resolução autônoma e pacífica de conflitos, para outro inerentemente desconhecido, errático, fragmentado e sem regularidade de comportamentos. Não são esperados cenários de equilíbrio de poder nem de hegemonia regional. Talvez seja mais adequado se referir à noção de «vazios regionais» que são ocupados por potências extrarregionais e/ou empresas transnacionais e atores não estatais, segundo as camadas e os tecidos da geopolítica que estejam em tensão.À medida que se aprofunda o declínio da região, aumenta seu nível de exposição e vulnerabilidade diante da interferência externa. A presença dos eua na América Central e no Caribe, bem como os vínculos com a Colômbia e o Brasil, têm como pretexto a «guerra contra as drogas» e o encurralamento da Venezuela, mas seu verdadeiro propósito é aumentar a ingerência militar na região. A internacionalização da crise venezuelana e sua não resolução têm como protagonistas três grandes potências extrarregionais: eua, China e Rússia. O Brasil pode ser um potencial espaço de conflito para a França, seu vizinho da fronteira norte na Guiana Francesa, que denuncia o desmatamento da Amazônia. A maior exposição a ciberataques, a presença ilegal de várias potências e navios pesqueiros no espaço marítimo do Atlântico Sul, o rearmamento do Reino Unido nas ilhas Malvinas ou uma batalha geopolítica – que poderia ser desencadeada pelos recursos naturais na Antártida diante de um eventual cenário de vencimento do Protocolo de Madri em 2048 sobre proibição da exploração de recursos minerais e a proteção do meio ambiente – são todos elementos que revelam o principal dilema de Vestfália na região: em um contexto de declínio pronunciado e deterioração econômica e social, como é possível exercer um controle efetivo dos ambientes terrestre, marítimo, aéreo, cibernético e espacial que preserve ao mesmo tempo a autonomia?A concorrência geopolítica não se restringe aos âmbitos estratégico e militar. Vestfália tenta também domar a Mundialização, levando-a ao seu próprio reduto com medidas que tendem a uma maior politização ou «securitização» do comércio, das finanças e das transferências tecnológicas. O nexo entre segurança, comércio e finanças ficou evidente após o lançamento, em 2019, da iniciativa «América Cresce» dos eua, que busca oferecer uma plataforma para financiar seu setor privado e compensar o avanço de projetos chineses na região, como a Iniciativa do Cinturão e Rota (conhecida também como a nova Rota da Seda), proposta em 2013, e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, criado em 2014. Ao mesmo tempo, o vínculo entre segurança, controle de dados e tecnologia é visível na tentativa do Departamento de Estado de proibir a Huawei e deter o avanço da tecnologia 5g de origem chinesa na região. Como resposta, Pequim está decidida a impulsionar ativamente uma diplomacia mais coercitiva e determinada. A denominada «diplomacia do lobo guerreiro»10 é um reflexo de um discurso mais confrontador dos embaixadores chineses, mas também sintoma de uma elevação dos níveis de tensão com os eua e Taiwan, de uma penetração política e econômica mais bem calibrada e cirúrgica na região por meio de acordos com governos subnacionais e de uma ainda resistente agenda política que vincula assistência e ajuda a objetivos diplomáticos, como mostram os casos de estabelecimento de relações com o Panamá em 2017, a República Dominicana e El Salvador em 2018, e a maior pressão recebida pelo Paraguai durante a pandemia em 2020; todos esses são países que mantinham estreitas relações com Taiwan, que a China considera uma província.Embora sejam perceptíveis a elevação dos níveis de combatividade e a ampliação dos campos de disputa na região, seria equivocado sustentar que a politização da Mundialização coloca os governos latino-americanos diante de um dilema ou cálculo de escolha entre pertencer a um ou outro bloco. Não presenciamos uma segunda Guerra Fria, mas a intensificação de uma disputa hegemônica em um contexto de profunda interdependência econômica entre ambas as potências. As camadas econômicas, financeiras, comerciais, tecnológicas e migratórias entre Washington e Pequim estão imbricadas. Washington e Moscou mantiveram um intercâmbio de somente quatro bilhões de dólares em 1979, o melhor ano. Hoje, os eua e a China comercializam esse valor em apenas três dias. Os investimentos entre ambos os países alcançaram 260 bilhões de dólares, e a posse de bônus do Tesouro em mãos chinesas é de 1,6 trilhão11. Disso surge a grande contradição destes tempos: enquanto Vestfália e as batalhas geopolíticas dividem os eua e a China, a Mundialização e as dinâmicas da economia política internacional os unem.Surfando na autonomia líquida

Ao longo da história, a noção de poder para a América Latina não se centrou principalmente na influência, mas na autonomia. Como assinala Benjamin Cohen, influência é poder sobre outros, e autonomia é poder para implementar políticas e resistir a pressões12. Enquanto as conceituações convencionais sobre as grandes potências se perguntam como conseguir a primeira, os enfoques teóricos que abordam os países da periferia como objeto de estudo se questionam como aumentar a segunda. Por isso, a autonomia esteve sempre no centro das pesquisas sobre política exterior do Sul global.A conceituação da autonomia na América Latina surge na Guerra Fria e tem como fundadores Juan Carlos Puig na Argentina e Helio Jaguaribe no Brasil. Tais interpretações partiam de suas premissas fundamentais no campo das relações internacionais: (a) o sistema internacional é hierárquico, e não anárquico, como sustentam os realistas e os liberais; e (b) os projetos nacionais e as crenças das elites determinam os tipos de relação a que um país aspira com as grandes potências. Assim, a noção de «autonomia heterodoxa» se caracterizava por uma disposição da elite a não confrontar totalmente os interesses estratégicos da potência dominante, mas postular simultaneamente um projeto em grande medida dissidente, especialmente no que diz respeito à defesa dos interesses nacionais13.Uma segunda onda de estudos sobre a autonomia surge no pós-Guerra Fria. No «realismo periférico» de Carlos Escudé, a noção de autonomia aparece associada à ideia de confrontação decorrente de uma superestimação da margem de manobra dos Estados fracos que não distinguia entre a autonomia que um Estado possui (uma consequência de seu poder) e o uso dessa autonomia14. Na primeira década do século xxi, Roberto Russell e Juan Tokatlian retomam esse debate ao proporem a noção de «autonomia relacional». Diferentemente de Escudé, eles sustentam que a «autonomia relacional» não é confrontação nem isolamento, mas a disposição de um país a atuar com independência e em cooperação com outros, de forma competente, cooperativa e responsável15. Os autores propõem também uma escala de graus ao longo de um contínuo cujos extremos são duas situações ideais: dependência total e autonomia completa. Segundo essa categorização, a autonomia é sempre uma questão de grau que depende fundamentalmente das capacidades, duras e brandas, dos Estados e das circunstâncias externas que enfrentam16.Finalmente, há uma terceira onda de estudos que oferece uma diferenciação analítica da autonomia, já não em questão de graus, mas sim na classificação dos subtipos de autonomia. Os acadêmicos brasileiros Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni classificam a noção de autonomia para explicar a evolução do caso brasileiro de três formas: «autonomia na distância», quando o país confronta as normas, instituições internacionais e a grande potência, tendendo simultaneamente ao isolamento e ao desenvolvimento autárquico; «autonomia na participação», quando a orientação externa se baseia em um compromisso com a governança global e as instituições multilaterais; e «autonomia na diversificação», quando se fundamenta principalmente nas relações com o Sul global17. A «autonomia com adjetivos» permite a comparação sincrônica entre países e a comparação diacrônica de um mesmo país ao longo do tempo.O debate sobre a autonomia continua vigente, mas ela parte de diagnósticos e pressupostos diferentes daqueles que originaram as reflexões dos pais fundadores no Cone Sul. Em primeiro lugar, as tensões atuais entre Vestfália e Mundialização são uma manifestação das contradições geradas por uma ordem internacional em que coexistem forças centrífugas e centrípetas, tanto nos planos estatal como não estatal. Tal manifestação combina simultaneamente níveis de concentração e difusão do poder, dinâmicas de conflito e interdependência, concorrência geopolítica e cadeias de inserção na globalização, controle territorial e fluxos transnacionais, em escalas macroscópicas e microscópicas18. Em segundo lugar, a autonomia já não é uma disposição exercida de forma livre e deliberada exclusivamente por uma elite: as sociedades são mais complexas, e a política exterior não é diferente do restante das políticas públicas.Atualmente, as fronteiras que definem a orientação externa de um país estão abertas à influência e à interposição de dinâmicas diferentes e intrincadas de vários atores (estatais e não estatais) e níveis (entre governos nacionais e subnacionais).

Longe da solidez inabalável da «autonomia heterodoxa» da Guerra Fria, a autonomia hoje continua possível, mas é mais líquida e frágil. A sociologia reflexiva da mudança oferece uma interpretação válida sobre o comportamento dos Estados19. Em um mundo entrópico, as condições de atuação dos países podem mudar antes que as formas de atuar se consolidem em condutas determinadas. Diante do duplo assédio sistêmico apresentado pelos processos de transição hegemônica e de entropia e incerteza – os embates de Vestfália e Mundialização – em um cenário de aprofundamento da dependência da região, as políticas exteriores latino-americanas têm menos margem para contestar ou resistir. No entanto, isso não deve levar a um julgamento impeditivo e paralisante que só dê atenção aos limitadores de estrutura e subestime as potencialidades de agência. A construção de horizontes possíveis e viáveis para a ação externa depende tanto de reconhecer a fragilidade dos cenários globais e regionais como da capacidade dos Estados de se anteciparem e serem resilientes diante da adversidade e de acontecimentos inesperados, mitigando riscos e aproveitando oportunidades.O não alinhamento ou a neutralidade como alternativa a uma subordinação automática, seja a Pequim ou a Washington, é hoje bem visível para acadêmicos e políticos20. A prescrição normativa de manter uma posição equidistante entre as duas potências é correta, mas insuficiente para um mundo e uma região que mudaram. Para melhorar a capacidade de negociação e fortalecer a resposta diante da multiplicação e da transversalização de riscos globais, os países da região que buscam preservar margens de manobra devem pensar menos no «espírito de Bandung» e mais em um «espírito de abacc Plus». A agência de controle nuclear criada conjuntamente pela Argentina e pelo Brasil (abacc) na década de 1990 é um exemplo que perdura em um terreno dominado por potências nucleares. A recente aliança entre o México e a Argentina para produzir a vacina contra o coronavírus e o Centro Argentino-Brasileiro de Biotecnologia (cabbio) também são demonstrações do potencial das agendas de nicho. Contudo, será preciso que essas agendas técnicas ganhem dimensões que abarquem uma comunidade de sentido que só surgirá da existência de um substrato político, econômico e social fundamentado por valores comuns, interesses mútuos e objetivos estratégicos compartilhados entre países da região.

Reflexões finais

O horizonte futuro da América Latina estará marcado por um conjunto de tensões derivadas da confluência de crises simultâneas associadas a riscos globais: crises sanitárias, crises de desigualdade social, crises climáticas e de perda de biodiversidade, e crise de endividamento e de instabilidade financeira. A convergência dessas crises compromete as perspectivas de desenvolvimento sustentável dos países, o que multiplica os riscos, aumenta a imprevisibilidade dos cenários futuros e reduz a capacidade de resposta do Estado e da sociedade. Esses riscos sistêmicos repercutem também em uma diminuição das propriedades de resiliência e das capacidades de adaptação das políticas exteriores, que são estratégicas diante dos cenários de concentração do poder em Vestfália e das tendências de difusão do poder na Mundialização.Para preservar as margens de autonomia e limitar ao máximo a interferência externa, as políticas exteriores deverão atuar com inteligência nas deficientes instituições regionais existentes, mas forjar de forma complementar múltiplas sociedades estratégicas com diferentes países que poderão encabeçar, segundo suas trajetórias, diferentes agendas temáticas, tais como saúde, gênero, redução de desigualdades sociais, ambiental, infraestrutura, regulação da tecnologia, proteção de recursos naturais, financiamento externo e transferência tecnológica, entre outros temas. «Enclaves de autonomias» deverão ser selecionados e priorizados por meio de diplomacias de nicho. Não só governos centrais, mas também provinciais e locais, atores da sociedade civil, cientistas, empresários e cidadãos podem contribuir para reforçar uma renovada «diplomacia 3m» (multidimensional, multiatoral e multinível). Será preciso antepor as questões temáticas às dogmáticas, traçando laços entre os campos técnicos e os âmbitos políticos, econômicos e sociais da cooperação regional.Em tempos de «autonomia líquida», a preservação de margens de manobra dependerá mais da antecipação e da adaptação que da rigidez. O debate sobre as políticas exteriores parece ter deixado para trás a dicotomia entre autonomia e dependência para girar em torno de uma diferenciação analítica de graus e tipos de autonomia. Isso implica considerar que existem transações constantes entre ambas as lógicas diante de uma complexificação dos atores, das agendas e das dinâmicas externas. A «autonomia líquida» é um tipo de «autonomia com adjetivos» que supõe proatividade, variações e flexibilidade ante os desafios e as oportunidades apresentados pelos cenários de Vestfália e Mundialização. Ela também pode implicar certo tipo de pragmatismo defensivo para oferecer concessões em temas específicos que serão funcionais para ganhar margens de manobra e resultados em outras batalhas. Não se trata hoje de «autonomia na resistência», mas sim de «autonomia na resiliência». É possível que o desafio destes tempos seja preparar-se para os cenários futuros mais restritivos ou adversos, compreendendo as potencialidades e os limitadores apresentados pelos ambientes mundiais e regionais, para poder articular políticas que contribuam para alcançar os cenários mais desejáveis com objetivos estratégicos de cooperação regional modestos, alcançáveis e realizáveis no curto e no médio prazos.

  • 1.

    Randall L. Schweller: «The Age of Entropy» em Foreign Affairs, 16/6/2014.

  • 2.

    Fórum Econômico Mundial: «Global Risks Report 2020», 12/2020, disponível em https://reports.weforum.org/global-risks-report-2020/.

  • 3.

    Global Firepower: «Military Strength Ranking», Genebra, 12/2020, www.globalfirepower.com/countries-listing.asp.

  • 4.

    Soft Power Index: «The Soft Power 30: A Global Ranking of Soft Power 2019», Portland / Facebook / usc Center on Public Democracy, 12/2020, https://softpower30.com/wp-content/uploads/2019/10/The-Soft-Power-30-Report-2019-1.pdf.

  • 5.

    Banco Mundial: «Solución comercial integrada mundial (WITS)», 12/2020, https://wits.worldbank.org/default.aspx?lang=es.

  • 6.

    WIPO: «Solicitudes internacionales de patente por país de origen», 12/2020, www.wipo.int/export/sites/www/pressroom/es/documents/pr_2020_848_annexes.pdf#annex2.

  • 7.

    Banco Mundial: «Gasto en investigación y desarrollo (% del PIB)», 12/2020, https://datos.bancomundial.org/indicador/gb.xpd.rsdv.gd.zs?locations=zj-z4.

  • 8.

    Daniel Schteingart, Juan Santarcángelo e Fernando Porta: «La inserción argentina en las cadenas globales de valor» em Asian Journal of Latin American Studies vol. 30 No 6, 2017.

  • 9.

    Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, pela sigla em inglês): Digital Economy Report 2019, Genebra, 12/2020, https://unctad.org/es/node/27419.

  • 10.

    Xhou Zhu: «Interpreting China’s ‘Wolf-Warrior Diplomacy’» em The Diplomat, 12/2020.

  • 11.

    Congressional Research Service: «US-China Trade and Economic Relations: Overview, 2020» em Focus, 12/2020, https://crsreports.congress.gov/product/pdf/if/if11284.

  • 12.

    B. Cohen: Currency Power: Understanding Monetary Rivalry, Princeton UP, Nova Jersey, 2015.

  • 13.

    María Cecilia Míguez: «La autonomía heterodoxa y la clasificación de las políticas exteriores en la Argentina» em Revista de Relaciones Internacionales, Estrategia y Seguridad vol. 12 No 2, 2017.

  • 14.

    José Briceño Ruiz e Alejandro Simonoff: «La Escuela de la Autonomía, América Latina y la teoría de las relaciones internacionales» em Estudios Internacionales vol. 49 No 186, 2017.

  • 15.

    R. Russell e J. Tokatlian: «De la autonomía antagónica a la autonomía relacional: una mirada teórica desde el Cono Sur» em Perfiles Latinoamericanos No 21, 2002.

  • 16.

    Letícia Pinheiro e Maria Regina Soares de Lima: «Between Autonomy and Dependency: The Place of Agency in Brazilian Foreign Policy» em Brazilian Political Science Review vol. 12 No 3, 2018.

  • 17.

    T. Vigevani e G. Cepaluni: «A política externa de Lula da Silva: a estratégia da autonomia pela diversificação» em Contexto Internacional vol. 29 No 2, 2007.

  • 18.

    J. Tokatlian: «Crisis y redistribución del poder mundial/Crisis and Redistribution of World Power» em Revista cidob d’Afers Internacionals No 100, 2012.

  • 19.

    Zygmunt Bauman: Modernidad líquida, FCE, Cidade do México, 2015.

  • 20.

    Carlos Fortín, Jorge Heine e Carlos Ominami: «Latinoamérica: no alineamiento y la segunda Guerra Fría» em Foreign Affairs Latinoamérica vol. 20 No 3, 7-9/2020.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad 2021, Agosto - Setembro 2021, ISSN: 0251-3552


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