Artículo
NUSO Nº Setembro 2013

Irã e América Latina: mais perto por uma conjuntura de futuro incerto

Desde meados da década de 2000, várias nações latino-americanas têm estreitado sensivelmente seus vínculos com o Irã. O presidente Mahmoud Ahmadinejad visitou diversas vezes os países do bloco bolivariano liderado pela Venezuela, e os laços políticos e econômicos têm tomado novos brios. Como foi o processo que permitiu a aproximação de países com histórias, culturas e regimes políticos tão distantes? Que valores os países latino-americanos compartilham com o regime de Teerã? Até que ponto as relações dependem das conjunturas, tanto iranianas como latino-americanas? O artigo responde a essas perguntas e oferece chaves de leitura para contextualizar os novos eixos geopolíticos soberanistas do mundo atual.

Irã e América Latina: mais perto por uma conjuntura de futuro incerto

Há alguns anos, o Irã e alguns países latino-americanos mantêm relações novas e cada vez mais intensas. Desde 2005, observam-se intercâmbios crescentes de toda natureza, especialmente com a Venezuela, Equador, Bolívia e Argentina. O presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, viajou três vezes à América Latina desde o início de 2013 para comparecer a três atos protocolares, como o funeral de Hugo Chávez, a chegada ao poder de Nicolás Maduro e a posse do presidente reeleito do Equador, Rafael Correa. Por outro lado, os ministros de Relações Exteriores da Argentina e do Irã assinaram na Etiópia, em 27 de janeiro de 2013, um compromisso relativo ao tratamento judicial de um atentado cometido em Buenos Aires em 1994 e atribuído a figuras do poder iraniano1.

Essa aproximação chamou a atenção dos meios de comunicação e de vários governos. No caso estadunidense e europeu, predomina a preocupação; em outras latitudes impõe-se a simpatia. Mas, sem dúvida, ninguém ficou indiferente. As ambições nucleares iranianas, juntamente com seu regime confessional, focalizaram todos os olhares críticos. Por outro lado, seu desafio permanente em relação a Washington é visto com aprovação em muitos países da periferia. E tudo isso se produz num contexto particular da América Latina: após o fim das ditaduras, a construção da paz na América Central e a consolidação da democracia nos países do Cone Sul, a América Latina se beneficia de uma forte simpatia global, tanto por parte das instituições como dos povos. Essas realidades transmitem percepções contraditórias que podem ser traduzidas em perguntas. Por que o Irã e certos países como Venezuela, Brasil, Bolívia, Cuba, Equador ou Nicarágua, tão distantes geográfica, cultural e ideologicamente, e sem um passado compartilhado, chegaram a aproximações tão estreitas? Qual é o conteúdo dessas confluências? Esse alinhamento anuncia uma nova divisão do mundo, que opõe o Ocidente, como na época da Guerra Fria, a uma contraparte que disputa com ele a hegemonia mundial?

Para responder a essas perguntas no contexto necessariamente limitado de um artigo, adotamos uma metodologia de pesquisa sem dúvida elementar, mas capaz de abrir caminhos para compreender melhor esses fenômenos. Vamos, então, tentar «desmontar» a problemática em partes, como se fosse um computador, que tem um componente material e outro programático. Primeiro, vamos oferecer uma «fotografia» das relações bilaterais Irã-América Latina, que permita medir sua dimensão real. Uma ideia mais precisa dessas relações, em sua intensidade e qualidade, pode de fato nos aproximar das lógicas políticas que as conduzem2.

Uma relação ampliada e consolidada a partir de 2005

Historicamente, as relações da América Latina com o Irã foram quase inexistentes. O Irã imperial mantinha vínculos diplomáticos formais com poucos países latino-americanos: com a Argentina, desde 1902; com o Brasil e o Uruguai, desde 1903; com o México, desde 1937; e com a Venezuela, desde 1947. O petróleo, fonte principal dos recursos iranianos, havia aberto uma nova via de contato com a Venezuela de Carlos Andrés Pérez, iniciadora da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP). O xá Reza Pahlevi visitou Caracas e Carlos Andrés Peres viajou a Teerã em 1977. Mais tarde, a revolução islâmica de 1979, que derrocou a monarquia, não trouxe mudanças qualitativas na relação mútua. Apenas podemos assinalar alguns contatos e projetos, embora eles possam ser analisados hoje, com a perspectiva do tempo acumulado, como passos premonitórios.

Entre 1986 e 1991, a Argentina e o Irã estabeleceram uma cooperação nuclear civil sob o controle da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). O projeto esgotou rapidamente suas potencialidades por duas razões. Por um lado, contrariava outros projetos desenvolvidos entre Argentina, Egito e Iraque (especialmente o programa chamado Condor II). Por outro, a guerra entre Irã e Iraque, o alinhamento político-militar da Argentina com os Estados Unidos e a participação argentina na primeira Guerra do Golfo levaram a nação sul-americana a suspender toda forma de cooperação com a Organização Iraniana de Energia Atômica (AEOI) em 1991, já sob o governo de Carlos Menem. Alguns anos mais tarde, em 2000, o Irã participou outra vez em Caracas de uma reunião da OPEP. Chávez já estava no poder. A partir desse evento, houve efetivamente uma aproximação, mas ainda limitada; era uma relação bilateral e de pouca densidade. Mais tarde, o chefe de Estado venezuelano viajou três vezes ao Irã entre 2000 e 2005. E no mesmo período, seu homólogo Mohamad Khatami (chefe de Estado entre 1997 e 2005) visitou Caracas em três oportunidades.

No entanto, a chegada de Mahmoud Ahmadinejad à Presidência iraniana, em 2005, coincidiu com a ascensão quase simultânea ao governo de dirigentes nacionalistas e de centro-esquerda na América do Sul: Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil (2003), Néstor Kirchner na Argentina (2003), Evo Morales na Bolívia (2006) e, pouco tempo depois, Rafael Correa no Equador (2007), Fernando Lugo no Paraguai (2008) e José «Pepe» Mujica no Uruguai (2010). Essas mudanças diversificaram e ampliaram as relações3. O novo presidente iraniano visitou quatro vezes a América Latina entre 2006 e 2010; outras duas vezes em 2012 e três entre janeiro e maio de 2013. Esteve na Venezuela em cada uma dessas viagens, mas também na Bolívia (em duas oportunidades), Brasil, Cuba, Equador e Nicarágua. Os presidentes desses países latino-americanos devolveram as visitas: Chávez esteve seis vezes em Teerã, Evo Morales em duas ocasiões, e Rafael Correa, Lula e Daniel Ortega viajaram em uma oportunidade. Depois dos chefes de Estado, ministros e deputados trocaram visitas cruzadas.

Mas, para além dessas viagens, pela primeira vez as relações entre Irã e América Latina se materializaram em algo mais que visitas. Os dois lados deram mais importância a suas representações diplomáticas. O Irã abriu embaixadas na Bolívia, Colômbia, Chile, Nicarágua (2007), São Vicente e Granadina (2008) e Equador (2009). A Bolívia inaugurou uma representação em Teerã. Em ambas as partes, os respectivos poderes criaram instrumentos de conhecimento mútuo. Após um seminário internacional dedicado à América Latina, organizado em 2007 em Teerã, o Instituto de Estudos Políticos Internacionais Iraniano (IPIS, na sigla em inglês) criou um departamento dedicado ao mundo hispanófono, enquanto Ahmadinejad nomeava quatro assessores regionais em 2010. Um deles foi especialmente encarregado dos temas da América Latina. Do lado latino-americano, algumas universidades criaram espaços específicos para responder às demandas dos Estados, como o Centro de Estudos do Oriente Médio Contemporâneo (Cemoc), que funciona desde 2002 na cidade argentina de Córdoba, e o Centro de Estudos do Oriente Médio e da África do Norte (Cemoan), fundado em 2011 em Heredia, na Costa Rica.

Essas instâncias facilitaram a assinatura de numerosos acordos e tratados. Por exemplo, em 2007, o Irã se juntou à Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA), criada por iniciativa da Venezuela. Além disso, Irã e Cuba realizaram conferências econômicas conjuntas em 1986. Já o Brasil criou com o Irã um fórum de diálogo em 1999. A lista continua: em 2002, Caracas e Teerã constituíram uma comissão mista para assegurar o seguimento de sua cooperação (entre 2000 e 2011, foram assinados 271 tratados4). Paralelamente, a Bolívia e o Irã instituíram um dispositivo de consultas políticas (dezenas de acordos bilaterais foram firmados nesse âmbito). Os tratados abriram um amplo leque de cooperação entre a nação islâmica e alguns países latino-americanos: armamento com Bolívia e Venezuela, energia e petróleo com Equador e Venezuela, finanças com Bolívia, Cuba e Venezuela, investimentos na Bolívia, Nicarágua e Venezuela.

Esses foros e acordos começaram a produzir efeitos concretos no final da primeira década do milênio. Primeiro apareceram instrumentos de facilitação de relações bilaterais. Foi suspendida a obrigação de visto entre Irã, Bolívia, Nicarágua e Venezuela. Em 2007, Iranair e Conviasa abriram uma linha aérea que une semanalmente Caracas, Damasco e Teerã. O Banco Industrial da Venezuela e o banco iraniano Edbi criaram uma filial comum em 2009, enquanto as nações da ALBA organizaram uma feira comercial em Teerã em 2010. Tudo isso facilitou os primeiros investimentos: uma fábrica de tratores e carros iranianos na Venezuela – Venirauto e Venirantractor –, unidades de produção de lácteos na Bolívia, entre outras iniciativas que, logicamente, alimentaram o comércio bilateral. As porcentagens de crescimento, embora impressionantes, devem ser necessariamente relativizadas5, já que antes de 2000 quase não havia intercâmbios. Com a Argentina, por exemplo, elas se multiplicaram por 100 entre 2000 e 2008. Porém, apesar das centenas de tratados firmados pela Venezuela, o Irã figurava em 2009 como seu importador número 39 e como seu exportador na posição 72. Paradoxalmente, a Argentina e o Brasil, que não estão entre os países que assinaram mais tratados com o Irã, são os que têm mais intercâmbios relativos6.

Paralelamente, ferramentas de compreensão coletiva mútua acompanharam essa rede de laços políticos, econômico-comerciais e contratuais. Essas iniciativas refletem uma vontade compartilhada pelos governos de criar pontes entre povos muito distantes, tanto em suas definições sociais como religiosas e culturais. Em 2006, o teatro da Universidade Azat de Teerã apresentou uma obra sobre um dos herois da independência venezuelana, Rafael Urdaneta. Um ano mais tarde, foi organizado em Teerã, pela primeira vez, um congresso de literatura latino-americana.

Em contrapartida, na América Latina surgiram cátedras de língua e literatura persas e, finalmente, foi concretizada a cooperação entre Telesur e HispanTV, o canal oficial iraniano aberto em espanhol em 2010.

Objetivos compartilhados

Desse modo, o Irã e alguns países latino-americanos estão criando novas pontes. A continuidade e o enriquecimento dos intercâmbios tanto na economia como na arena político-diplomática e cultural refletem uma reciprocidade baseada em interesses e objetivos comuns. Mas também vem à tona uma pergunta relativa ao programa que sustenta e alimenta essa reciprocidade produtora de laços tão diversos.

Uma data, 2005, surge como ponto de partida de uma reflexão explicativa. Nesse ano Ahmadinejad chegou ao poder e, como já vimos, naquele momento havia ocorrido uma ruptura político-institucional na América do Sul. Pela via eleitoral, estavam chegando ao poder partidos e movimentos em ruptura com seus antecessores na Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai e Uruguai. Na Venezuela, Chávez governava desde 1999. Somam-se a esse grupo um país da América Central (Nicarágua) e outro do Caribe (Cuba), o único sem multipartidarismo na região. As experiências de governo que esses países colocam em prática, contudo, são muito diversas, embora todas possam ser consideradas parte da chamada «guinada para a esquerda» latino-americana. Sem entrar num debate ideológico que não corresponde à temática central desse artigo, alguns atributos compartilhados por todos esses governos merecem uma atenção prioritária, precisamente porque são comuns a todos. Por exemplo, com a exceção de Cuba, todos esses governos compartilham os valores da democracia representativa. Todos eles, enquanto mantêm suas economias no âmbito do livre mercado, reforçam o papel do Estado para desenvolver políticas sociais ativas, reduzir a pobreza e, às vezes, as desigualdades, em alguns casos nacionalizando empresas e recursos estratégicos. Todos, por último, buscam reforçar solidariedades continentais, e às vezes extracontinentais, privilegiando as periferias do poder mundial, para ampliar seus espaços soberanos.

Sem entrar tampouco em debates relativos à ideologia ou aos princípios que sustentam a ação do governo iraniano, não é possível deixar de constatar que a defesa da soberania é mais importante que qualquer outro – e quase o único – princípio que podia permitir uma aproximação com os novos governos latino-americanos. De um lado e do outro, desde 1979 no caso iraniano, e desde os anos 2000 na América Latina, defende-se uma nova organização do mundo capaz de romper com as dependências, reduzir a influência das potências maiores e construir um modelo de governabilidade global, ampliando suas capacidades de decisão tanto na diplomacia como na economia; o que um sociólogo argentino chamou de «insubordinação fundante»7. Argumentamos, então, que a abertura de uma janela conjuntural ofereceu a possibilidade de somar essas aspirações compartilhadas, ainda que emergissem em condições ideológicas e políticas muito distintas. A chave desse encontro intercontinental foi o petróleo, produto fundamental das economias do Irã e da Venezuela – ambos membros da OPEP. Uma reunião realizada em Caracas em 2000, meses após a chegada de Chávez ao poder, permitiu desenhar os primeiros canais de comunicação. E a ampliação, a quase toda a América Latina, de aspirações soberanas, entre 2003 e 2007, criou as condições de propostas mais amplas, tanto em seus conteúdos como no seu perímetro geopolítico.

As bases dessa aproximação não têm nada especialmente oculto. Pelo contrário. Basta ler a Constituição iraniana, redigida em dezembro de 1979 (e reformada em 1988 e 1989), depois da tomada de poder pelo aiatolá Khomeini, para visualizar o lugar central outorgado à defesa da independência, que estrutura a política exterior. «Um dos paradoxos da república islâmica, apesar de suas ambições universais, foi a construção de uma política nacionalista radical», escreve o especialista em política iraniana Bernard Hourcade8. Essa doutrina é compartilhada, de uma forma ou de outra, pelos governos latino-americanos hoje definidos como bolivarianos, e também outros, como Argentina, Brasil e Uruguai, que atuam na mesma linha mas com estilos e definições diferentes segundo suas histórias nacionais. Por motivos e caminhos distintos, Irã, Venezuela, Argentina, Brasil, Cuba, Equador e Bolívia entraram em contradições concretas com os EUA e alguns países europeus. A linha diplomática que pretende organizar o mundo de forma colegiada, aliada à vontade de defender a capacidade de decisão soberana, gerou iniciativas diplomáticas, econômicas e comerciais nesses países que colidiram com as regras determinadas nessas matérias pelos Estados mais poderosos, ou «centrais»9, para utilizar uma terminologia já clássica de pensadores e políticos latino-americanos.

A partir de opções de mudança compartilhadas, um conjunto de países desenvolveu novas formas de cooperação bilateral concreta, que foram se ampliando ano a ano. Todos eles concordam com a necessidade de se desligar de correntes econômicas, tecnológicas e militares dominantes para ampliar seu espaço de soberania. Alguns Estados submetidos a sanções por parte de países «centrais», sejam elas globais, como Cuba e Venezuela, ou pontuais, como Argentina e Venezuela, tentaram abrir mercados com o Irã e outros parceiros e garantir provedores alternativos, para dessa forma recuperar ou ampliar uma soberania afetada. Suas relações comerciais, financeiras e militares estão restringidas por sanções ou medidas impostas pelos EUA. O embargo norte-americano, por exemplo, impede o acesso de Cuba a empréstimos bancários internacionais, assim como a produtos que tenham mais de 10% de componentes de origem estadunidense. A Venezuela não pode comprar aviões militares brasileiros ou espanhois, pelo veto de Washington, se esses materiais tiverem partes fabricadas nos EUA. Já a Argentina teve que enfrentar um embargo de uma de suas fragatas militares – o barco-escola de sua Marinha –, atracada durante meses em Gana em cumprimento a uma decisão tomada por um tribunal dos EUA por uma demanda dos chamados fondos buitres («fundos abutres»), derivada da última troca de bônus da dívida, após a crise de 2001.

Na mesma linha, a Venezuela e o Irã, apoiados mais tarde pelo Equador, atuaram no seio da OPEP para manter um preço relativamente alto do barril de petróleo. O Brasil articulou alianças com países do Sul, incluindo o Irã, para criar uma nova relação de força na Organização Mundial do Comércio (OMC) a partir da conferência de Cancun em 2003. Todos eles buscam ter acesso, sem restrições, às tecnologias mais avançadas. Os latino-americanos reconheceram então o direito do Irã à tecnologia nuclear civil. Bolívia e Irã, por exemplo, assinaram um convênio de cooperação nessa área. Já Irã e Venezuela decidiram estudar a construção de aviões não tripulados.

Além disso, Irã e América Latina convergiram em problemáticas globais, propondo uma gestão compartilhada dos problemas propostos à comunidade internacional baseada na igualdade entre Estados, no respeito a sua soberania, no diálogo e na não ingerência. Cuba e Irã coincidiram desde os anos 1990 em rejeitar seu tratamento como Estados párias, embargados pelos EUA. Assim expressou o ministro iraniano de Relações Exteriores, Alizera Jahangiri, na Organização das Nações Unidas, em 25 de outubro de 2011:

A República Islâmica do Irã repudia com firmeza e recorda sua oposição a toda aplicação unilateral de medidas econômicas e comerciais de qualquer Estado em relação a outro, assim como a aplicação extraterritorial de leis nacionais que prejudiquem a soberania de outro Estado (…). A República Islâmica ressalta a urgente necessidade de suspender as inumanas medidas que afetam Cuba10.

Em consonância com essa visão de mundo, em 17 de maior de 2010, aproveitando e instrumentalizando sua emergência política apoiada na bonança econômica, o Brasil tentou mediar o conflito nuclear iraniano em concertação com a Turquia. E em 13 de janeiro de 2012, o presidente equatoriano Rafael Correa, ao receber seu par iraniano, confirmou a convergência entre as duas nações da seguinte forma:

Nós temos relações com países que lançaram bombas atômicas, matando centenas de milhares de seres humanos; que invadiram outros países, causando mais de um milhão de mortos; com países que foram colonizadores brutais da África e da própria América Latina (...); o Irã, como qualquer outro país, tem o direito de desenvolver energia nuclear com fins pacíficos.11

Na Venezuela, onde se encontrava em visita oficial em 9 de janeiro de 2012, o presidente Ahmadinejad sintetizou assim os fundamentos da convergência com seus parceiros nacionalistas latino-americanos: as culturas dos povos desta região e suas exigências históricas se parecem com as do povo iraniano (...). O povo latino-americano tem um pensamento anticolonialista12.

Irã-América Latina: um futuro que depende de fatores conjunturais

As relações entre Irã e América Latina, apesar de seus avanços, não são «centrais», escreve Sergio Moyá Mena13. Os países «periféricos» mantêm, efetivamente, relações comerciais mais fortes com as principais potências do que com nações emergentes ou alternativas. No entanto, apesar do comentário acertado, poderia-se pensar que a atual dinâmica ascendente poderia reverter essa situação num prazo difícil de prever, mas com horizonte certo. E que a continuidade indefinida, ou de médio prazo, da dinâmica atual não parece clara.

Somente uma vontade política comum às duas partes pode permitir superar pouco a pouco a distância inicial, não apenas cultural e histórica, mas também econômica e comercial. É preciso notar que existem em cada uma das partes núcleos críticos dentro dos aparatos de governo e nas sociedades. Ao mesmo tempo, nem todos dentro do complexo sistema de poder iraniano compartilham a diplomacia do atual presidente, que já conclui seu mandato. De fato, seus adversários dentro do espaço islâmico incluem entre suas críticas a política exterior de Ahmadinejad. No total, 122 membros do Parlamento redigiram uma carta muito difundida onde lamentavam que, na atual situação do país, tanto tempo e esforços fossem destinados a um espaço geopolítico tão distante em todos os aspectos. O ex-ministro conservador Manoucher Mottaki e o anterior porta-voz do Ministério de Relações Exteriores, Ramin Mehmanparast, também consideraram que o investimento diplomático realizado pelo Irã na América Latina é contra-produtivo, pois supõe esforços demais sem garantir resultados claros14.

Os valores democráticos fundadores das democracias latino-americanas, restaurados com tanto esforço nos anos 80, articulam outro tipo de críticas. Desde a posse de Dilma Rousseff como presidente do Brasil, nota-se um certo esfriamento dos vínculos com Teerã. Por exemplo, o Brasil condenou na Comissão de Direitos Humanos da ONU certas políticas do governo iraniano, especialmente em relação à situação das mulheres. Quando esteve no Rio de Janeiro em junho de 2012, onde participava da Conferência Rio+20, Ahmadinejad não foi recebido pela mandatária brasileira. No caso argentino, é a política iraniana dos anos 1990 o que até agora impediu uma cooperação duradoura entre os dois países. A investigação do atentado à AMIA freou as aproximações. A Argentina do presidente Néstor Kirchner votou em 2006 pela resolução 1.694 da ONU que sanciona o Irã. Depois de divulgar uma resolução denunciando o regime de Teerã e o Hezbollah, a Argentina submeteu o caso à Interpol em 2006. Em 20 de abril de 2007, Kirchner deu as seguintes explicações:

É terrível como muitos argentinos às vezes gostariam que déssemos prioridade aos intercâmbios comerciais, e não em encontrar a verdade sobre quem cometeu os eventos aberrantes aqui nesta Pátria. Não há nenhuma moeda, nem cem, nem um bilhão de moedas que possam ser trocadas pela perda de vidas e o atentado sinistro que nossos compatriotas sofreram.15

A atual presidente, Cristina Fernández de Kirchner, pensava que o compromisso assinado em 27 de janeiro de 2013 entre os dois governos, para buscar esclarecer o atentado terrorista, lhe permitiria recomeçar do zero e combinar justiça com Realpolitik. Contudo, além da resistência da oposição parlamentar e da liderança judaica local, o surpreendente relatório do promotor Alberto Nisman, que no final de maio de 2013 denunciou a existência de uma rede terrorista iraniana em toda a América Latina16, reforçou oportunamente as vozes críticas, prejudicando a via que o governo pretendia seguir.

Por outro lado, é importante mencionar que as políticas de aproximação com o Irã e os países da Liga Árabe, articuladas pelos países da ALBA e também pelo Brasil, permitiram fortalecer, e às vezes criar, complexos laços bilaterais e interregionais. As cúpulas de Chefes de Estado e de Governo da América do Sul e Países Árabes (ASPA) abriram espaços de soberania internacional compartilhados. Mas, a partir de 2011, os parceiros árabes de Brasília, Caracas, Havana, La Paz, Manágua e Quito foram pressionados internamente por movimentos populares conhecidos como a «primavera árabe». Chegaram ao poder, no Egito, na Líbia e na Tunísia, ou submergiram o país em longos e incertos conflitos, como na Síria, grupos que rejeitavam as orientações, tanto externas como internas, das autoridades anteriores. Esses acontecimentos aprofundaram as contradições no mundo árabe, onde o Irã intervém ativamente apoiando diversas contrapartes islâmicas. O adiamento da cúpula da ASPA prevista para Lima em 2011 é um reflexo dessas contradições. Foi possível organizá-la finalmente, mais de um ano mais tarde, mas a tentativa de articular interesses compartilhados entre espaços geopolíticos de «soberania limitada» perdeu força.

A vitória do candidato-surpresa Hasan Rohani – com um perfil diferente do de seu antecessor – nas recentes eleições presidenciais iranianas conduz a várias incertezas. E somam-se a elas interrogantes deste lado do oceano: Venezuela a Argentina atravessam situações internas complexas. O Brasil, por sua vez, enfrenta uma conjuntura econômica e social que absorve a atenção de seus dirigentes. Além disso, surgiram outras alternativas na América Latina que se definem ocidentais e liberais, como a Aliança do Pacífico. E, de fato, o governo israelense soube aproveitar esse momento de mudança para tentar recuperar um espaço geopolítico perdido há mais de dez anos. Seu ministro de Relações Exteriores, Avigdor Liberman, visitou esta América Latina «ocidental e liberal» em julho de 2009, na primeira visita de um chanceler israelense em 14 anos. A visita foi seguida de outra de Daniel Yossi Peled, ministro sem pasta, em agosto de 2011. O ministro reatou laços com a Costa Rica e convidou o presidente colombiano a visitar Israel. Colômbia e Israel estão negociando um tratado de livre comércio (TLC). A visita de Peled também permitiu divulgar a posição israelense acerca da presença na América Latina, e em especial nos países soberanistas, do grupo Hezbollah – aliado do Irã e do sírio Bachar Al-Assad. Essa presença é amplamente denunciada por laboratórios de ideias da direita norte-americana e círculos pró-israelenses que vão difundindo rumores e constroem storytellings para os meios massivos de comunicação. Não é um dado menor que isso ocorra poucos meses antes da realização de consultas eleitorais importantes na Argentina e no Brasil.

Por outro lado, colocando entre parêntese a aproximação entre o Irã e a região, ninguém pode garantir a continuidade no poder de governos soberanistas, ao menos na América Latina. No caso iraniano, pode-se supor que o futuro presidente, que venceu nas urnas em 14 de junho de 2013, apoiando-se no Guia da Revolução, manterá as linhas gerais da política interior e exterior. Mas não é o caso da América Latina. As políticas internas e externas da região estão à mercê de eleições, cujos resultados supõem ou podem supor orientações muito distintas. E sem a continuidade dos governos atuais, certamente se romperiam a política econômica e a diplomacia soberanista que a acompanha em países como Argentina, Bolívia, Brasil e Venezuela. Isso significa que seria suspensa a cooperação iniciada nos anos 2000 com o Irã. E não se trata de uma hipótese insensata: a Nicarágua sandinista havia construído pontes com o Irã da Revolução Islâmica desde 1980, mas essas pontes foram suspensas quando a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) perdeu as eleições em 1990. Hoje, no momento em que se aproximam as datas eleitorais, observam-se tensões muito fortes. A oposição liberal-conservadora conseguiu desbancar um presidente reformista como Fernando Lugo no Paraguai. As últimas eleições praticamente paralisaram a Venezuela, motor ideológico e financeiro da ALBA. Dentro de alguns meses haverá votações no Brasil, Argentina, Bolívia e Uruguai. Apenas Rafael Correa superou este ano, no Equador, a prova presidencial. O clima político do continente pode mudar muito rapidamente. O calendário eleitoral impõe consultas em muitos países latino-americanos em 2013, 2014 e 2015. O resultado dessas consultas poderia abrir outras perspectivas nos âmbitos interno e externo. Há vários meses, os países alinhados com o Ocidente, tanto comercial como diplomaticamente, reuniram-se para elaborar uma contraproposta diplomática e comercial à ALBA, e talvez também à União de Nações Sul-Americanas (Unasul), e criaram a Aliança do Pacífico. Eram quatro em junho de 2012: México, Colômbia, Peru e Chile. Mais recentemente, acabam de se juntar Costa Rica e Panamá. Inclusive o Uruguai, embora seja membro do Mercosul, pediu um status de observador. Essa conjuntura gera gretas continentais, embora oficialmente negadas. As autoridades do Brasil, membro dos BRIC, factótum da Unasul e candidato a um posto como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, estão mobilizando a diplomacia estatal (Itamaraty) e a partidária, com o Fórum de São Paulo, para desenhar respostas conjuntas que poderiam permitir a continuidade do Partido dos Trabalhadores (PT) no Planalto, assim como ajudar os parceiros em dificuldades, sejam da ALBA, como Venezuela, ou do Mercosul, como a Argentina.

Mas são os eleitores que têm a última palavra. Só eles têm a capacidade de aprovar ou suspender as equipes de governo que implementaram há muito poucos anos estratégias de blocos soberanistas entre países latino-americanos, árabes e Irã, uma iniciativa que ainda está vigente mas com um futuro pendente e muitas incógnitas.

  • 1. Nos anos 90, foram produzidos em Buenos Aires dois atentados cujo alvo eram Israel e a comunidade judaica, um dirigido contra a embaixada de Israel na Argentina, em 1992, e o outro contra a Associação Mutual Israelita Argentina (amia), em 1994. Por este último, foram acusados judicialmente figuras importantes do regime de Teerã.
  • 2. Para escrever este artigo, atualizamos duas publicações anteriores: «L’Iran et l’Amérique latine de langue espagnole, les intérêts communs et circonstanciels de deux mondes longtemps éloignés» em Michel Makinsky: L’Iran et les grands acteurs régionaux et globaux, L’Harmattan, Paris, 2012 e «L’Iran et l’Amérique latine: des convergences solides et circonstancielles», série Actuelles de l’Ifri, Ifri, Paris, julho de 2012.
  • 3. V. a agenda dessas visitas em Brandon Fite: us and Iranian Strategic Competition, Peripheral Competition in LatinAmerica and Africa, csis, Washington, dc, 7/11/2011.
  • 4. Leopoldo E. Commenares G.: «Las relaciones entre Irán y Venezuela: implicaciones para el gobierno venezolano», fes, Buenos Aires, julho de 2011.
  • 5. Sergio I. Moya Mena: «Iran and Latin America: Vital Interests and Soft-Power Strategy”, Reportes del Cemoan No 4, setembro de 2012.
  • 6. Elodie Brun: «O Irã na América Latina» em Política Externa vol. 19 No 4, 3-5/2011.
  • 7. Ver Marcelo Gullo: La insubordinación fundante. Breve historia de la construcción del poder de las naciones, Biblos, Buenos Aires, 2008.
  • 8. Bernard Hourcade: Geopolítique de l’Iran, Armand Colin, Paris, 2010.
  • 9. Ver M. Gullo: op. cit.; Samuel Pinheiro Guimarães: Cinco siglos de periferia, Prometeo, Buenos Aires, 2005; e Darío Battistella: Théories des relations internationales, Presses de Sciences-Po, Paris, 2003, pp. 220-223.
  • 10. Missão do Irã na onu, xl Asambleia Geral, http//iran-un.org.
  • 11. Declaração em Teerã dos embaixadores da alba em Noticias de Irán en español, 16/7/2010.
  • 12. El País, 9/1/2012.
  • 13. S.I. Moya Mena: op. cit.
  • 14. Noticias de Irán en español, 17/9/2010.
  • 15. Oliver Galak: “Irán vuelve a ser un socio importante” em La Nación, 7/9/2008, disponível em www.lanacion.com.ar/1047429-iran-vuelve-a-ser-un-socio-importante.
  • 16. V. «Patrocinar actos terroristas» em Página/12, 30/5/2013; «Argentina: acusan a Irán de infiltrar América Latina» em El Nuevo Herald, 29/5/2013.
Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Setembro 2013, ISSN: 0251-3552


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