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Gaza: a nova fronteira da disputa política no Brasil


Nueva Sociedad Novembro - Dezembro 2024

A eclosão do novo capítulo do conflito no Oriente Médio passou a permear a lógica política brasileira, servindo como mais um instrumento de manipulação e desinformação por parte da extrema direita. A diplomacia de Lula vê o Oriente Médio como parte da redefinição da ordem mundial. Ao defender a causa palestina, Brasília não se limita a defender os territórios ocupados: envia uma mensagem explícita às potências ocidentais sobre a necessidade de reconhecer que a lógica colonial se esgotou e de defender o direito internacional.

<p>Gaza: a nova fronteira da disputa política no Brasil</p>

No início de agosto de 2024, o primeiro debate entre os candidatos para a prefeitura de São Paulo viu o desembarque inesperado da crise em Gaza como um ponto na agenda de acusações entre os candidatos. Num certo momento, o candidato populista de direita Pablo Marçal acusou o líder nas pesquisas, Guilherme Boulos, do Partido Socialismo e Liberdade (psol), de ser um «apoiador de Hamas, de grupo terrorista». A realidade é que, desde a eclosão do novo capítulo do conflito no Oriente Médio, o tema passou a permear a lógica política brasileira, servindo como mais um instrumento de manipulação e desinformação por parte da extrema direita. Não por acaso, em março de 2024, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu escreveu uma carta ao ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro convidando o político ultraconservador a visitar Israel. O texto foi enviado um dia depois de o líder de extrema direita reunir milhares de pessoas em São Paulo em seu apoio e como forma de blindá-lo do risco de ser indiciado por tentativa de promover um golpe de Estado. Na manifestação, bandeiras «patriotas» brasileiras desfilaram ao lado de símbolos de Israel. Netanyahu agradeceu a Bolsonaro e disse que a amizade entre eles era «ainda mais importante em tempos de crise e guerra». O primeiro-ministro disse na carta que ele tinha «boas lembranças da minha viagem ao Brasil e gostou de conhecê-lo» e que «sua verdadeira amizade por Israel foi firmemente expressa durante sua Presidência, tanto em palavras quanto em ações, incluindo seu apoio inabalável a Israel em arenas internacionais»1. Bolsonaro, que tem seu passaporte retido diante das investigações contra ele no país, dificilmente poderá atender ao convite. Mas a carta não era apenas um sinal da aliança entre dois líderes. Dentro do governo brasileiro, o texto foi considerado como uma mensagem para o atual presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva. «Ainda ontem, o senhor demonstrou sua solidariedade com o povo e o Estado de Israel ao agitar orgulhosamente a bandeira israelense em um comício em São Paulo. Essa foi uma rejeição clara e moralmente sólida das acusações ultrajantes de seu sucessor contra as operações da idf [Forças de Defesa de Israel] em Gaza», escreveu Netanyahu a Bolsonaro, que também foi indiciado por falsificar seu cartão de vacinação e se tornou inelegível até 2030 por outros crimes.

Lula vinha intensificando suas críticas ao governo israelense, acusando suas ações em Gaza de promover «genocídio» e fazendo referências à Alemanha nazista. A reação de Israel foi exigir um pedido formal de desculpas do brasileiro e, até então, considerá-lo persona non grata. Mas a recusa de Lula em ceder abriu uma crise ainda maior. Num gesto que foi interpretado como uma «humilhação», o governo de Israel chamou o embaixador do Brasil em Tel Aviv a uma visita ao Museu do Holocausto e, diante da imprensa, o chefe da diplomacia de Netanyahu condenou a atitude do governo brasileiro. Dias depois, o Itamaraty retiraria temporariamente seu embaixador de Israel, aprofundando o que é a maior ruptura entre os dois países desde a criação do Estado israelense. A crise passou a ser amplamente usada pela extrema direita brasileira como uma arma política doméstica, criando a narrativa de que a esquerda do país estaria ao lado de «terroristas», enquanto os cristãos brasileiros se alinhariam com Israel. Quatro meses depois, a retirada do Brasil passou a ser permanente. O ato não significa uma ruptura completa de relações diplomáticas com Israel. Mas é o gesto mais forte já tomado pelo Brasil contra o governo do primeiro-ministro Netanyahu. A embaixada passou a ser liderada pelo encarregado de Negócios, reduzindo a importância da representação. Diplomaticamente, é um sinal aos israelenses do grau de prioridade e de relevância que o governo Lula quer manter com o governo Netanyahu.

Uma destruição simbólica da presença do Brasil

Simbólica ainda nessa ruptura foi a destruição do local em Gaza que serviu de base para a primeira missão de paz do Brasil, há quase 70 anos. O bairro, chamado de Campo Brasil, fica em Rafah e, ao longo de décadas, se transformou numa zona residencial da cidade, abrigando os refugiados palestinos. Mas a região foi duramente afetada pelos ataques israelenses, ainda em 2023, e com bombardeios que continuaram em 2024.

Em outras investidas de Israel em Gaza, como em 2014, alguns dos prédios do local já tinham sido alvos de ataques e foram derrubados. Agora, a destruição é ainda mais significativa. Segundo palestinos e brasileiros que mantêm contato com os moradores de Rafah, a ofensiva é permanente.

Dois terços dos edifícios de Gaza foram destruídos ou danificados na guerra, diz a Organização das Nações Unidas (onu), o que representa uma destruição de proporções poucas vezes vistas pela entidade nos últimos anos2. Se por meses a região de Rafah era considerada como mais segura e até designada pelos israelenses como áreas para deslocar os civis, a onu alerta que já não há como garantir a segurança em nenhuma cidade de Gaza.

Em 1957, coube aos militares brasileiros proteger os palestinos. O Batalhão Suez ficou sediado em Gaza por um período de dez anos, em missões intermitentes. A base foi batizada de Campo Brasil e, quando a missão terminou, foram os próprios palestinos que impediram que as autoridades locais mudassem o nome da região.

Sem os militares, o local passou a abrigar refugiados palestinos, primeiro em barracas. Anos depois, casas modestas foram erguidas para atender a população. A missão foi a primeira da história da onu e havia sido criada em 1956, quando a Assembleia Geral aprovou uma resolução que estabelecia a Força de Emergência das Nações Unidas e um cessar-fogo na guerra de Suez. Documentos do Itamaraty revelam que, dois dias antes, em 5 de novembro, os países-membros da onu foram convidados a contribuir com tropas para a missão de paz3.

O governo brasileiro manifestou interesse em contribuir com efetivos nacionais. Também fizeram parte da missão tropas do Canadá, da Colômbia, da Dinamarca, da Finlândia, da Índia, da Indonésia, da Noruega, da Suécia e da então Iugoslávia.

A partir de então, as Nações Unidas trabalhariam para assegurar a manutenção da paz e supervisionar a retirada das tropas de Israel, da Grã-Bretanha e da França. Deveriam, também, monitorar a Linha de Demarcação do Armistício com o objetivo de assegurar a manutenção do cessar-fogo entre Egito e Israel. Em 17 de novembro de 1956, o presidente Juscelino Kubitschek assinou a lei que autorizava a participação brasileira em missões «em cumprimento de obrigações assumidas pelo Brasil como membro de organizações internacionais ou em virtude de tratados, convenções, acordos, resoluções de consulta, planos de defesa, ou quaisquer outros entendimentos diplomáticos ou militares».

Dias depois, o Congresso aprovaria a lei. Estava criado, assim, o Batalhão Suez. «Em fevereiro de 1957, com o desembarque das tropas brasileiras, a Força de Emergência das Nações Unidas (unef) alcançou sua formação completa, com 6.073 militares», escreveu o embaixador brasileiro em Ramallah, Alessandro Candeas, em texto que acompanhava um livro de fotos sobre o Batalhão e que havia sido entregue para os palestinos em 2022.«Os militares brasileiros trabalharam na desminagem do terreno com o objetivo de assegurar o avanço seguro das tropas da onu da Península de Sinai até a Faixa de Gaza», escreveu4.

Segundo o texto, o restante do contingente embarcou, também em janeiro de 1957, no navio Custódio de Melo, chegando ao Egito em 4 de fevereiro. No total, o primeiro contingente do Batalhão Suez foi composto por 526 militares.

Inicialmente, o contingente brasileiro foi responsável por garantir a segurança do Campo de Rafah, unidade logística da onu no sul da Faixa de Gaza. Também foi responsável pelo monitoramento de um trecho da linha de armistício entre Israel e Gaza. O Batalhão Suez instalou seu quartel-general, denominado Campo Brasil, em um antigo forte inglês, nas proximidades do Campo de Rafah.

O Batalhão Suez passou a monitorar outros trechos da linha de armistício, tendo sido o país que mais acumulou áreas de vigilância. Mas, em maio de 1967, o Egito retirou o apoio à permanência das forças em seu território, o que resultou no fim da missão de paz. «Foi dado prazo de partida ao contingente internacional até junho. Nesse meio tempo, eclodiu a Guerra dos Seis Dias, de modo que parte do Batalhão Suez se viu cercado pelo fogo cruzado entre Israel e Egito», relatou o embaixador, no texto que acompanhava as fotos5.

Os últimos militares brasileiros deixaram a Faixa de Gaza em 13 de junho de 1967, encerrando, assim, a história do Batalhão Suez. Durante os dez anos da missão, o Brasil assumiu seu comando em duas ocasiões: a primeira foi em 1964, como o major-general Carlos F. Paiva Chaves; no segundo momento, o golpe militar já havia ocorrido no Brasil. No total, 6.204 militares brasileiros serviram no Batalhão Suez entre 1957 e 1967. Nesse período, sete oficiais brasileiros morreram, sendo um deles vítima das hostilidades no início da Guerra dos Seis Dias.

Bolsonaro rompeu o compromisso do Brasil na região

A realidade é que o conflito em Gaza penetrou nas entranhas da política nacional e foi incorporado à tensa disputa num país rachado.

Durante o governo Bolsonaro, a partir de 2019, o Brasil rompeu com sua tradição diplomática e passou a se alinhar com as posições de Israel na onu e em debates internacionais. O Itamaraty se tornou um dos raros serviços diplomáticos a votar ao lado de israelenses e americanos em resoluções nas Nações Unidas e passou a defender, de forma vocal, uma nova forma de lidar com a crise.

Em 2021, por exemplo, o governo Bolsonaro foi apenas um dos seis países que votaram por defender Israel no Conselho de Direitos Humanos da onu. Outra resolução denunciava os assentamentos criados pelo governo de Israel em territórios ocupados. 36 países votaram pelo texto e em apoio aos palestinos, entre eles todos os países latino-americanos no Conselho, além da Alemanha, França, Índia, Japão e Itália. O Brasil, porém, foi um dos oito países que optaram por se abster.

Bolsonaro passou a ser até mesmo o porta-voz dos interesses israelenses na onu. Em 2022, foi a delegação brasileira quem pediu a palavra na reunião sugerindo que as resoluções não fossem aprovadas e que fossem submetidas ao voto. Em termos diplomáticos, tal gesto é apenas adotado pelos aliados mais próximos.

A decisão brasileira também quebrou uma tradição, já que o Itamaraty evitava sempre ser o país a solicitar voto. Isso ocorreu apenas em uma situação envolvendo a Venezuela. Mas jamais em temas fora da América Latina.

Além de uma aproximação diplomática, o voto cumpria um objetivo doméstico para atender à base evangélica do governo de Jair Bolsonaro. Israel é uma espécie de referência para as igrejas pentecostais, muitas das quais contam com ampla influência em ministérios no Brasil.

A mudança de postura ocorria depois que uma delegação brasileira liderada pelo então chanceler Ernesto Araújo esteve em Israel. Na agenda: uma coordenação nas votações nos organismos internacionais, entre eles o Conselho de Direitos Humanos da onu.

A união contra o tpi

Nos encontros bilaterais entre os governos Bolsonaro e Netanyahu, outro tema passou a ser central nas discussões reservadas: o Tribunal Penal Internacional (tpi), em Haia. Israel é alvo de um inquérito sobre eventuais crimes de guerra nos territórios palestinos. Já o governo brasileiro de Jair Bolsonaro era alvo de diferentes queixas por parte de grupos indígenas, do cacique Raoní e por entidades da sociedade civil que sugerem crimes de genocídio.

O processo sobre o Brasil nem sequer foi aberto ainda, e a promotoria em Haia avalia se existem bases para que uma apuração preliminar seja lançada. Ainda assim, o tema foi tratado como preocupação dentro do governo. Uma eventual abertura de um processo seria o primeiro contra o Brasil, com repercussões geopolíticas e até para a atração de investimentos.

Naquele momento, o então o ministro das Relações Exteriores de Israel, Gabi Ashkenazi, fez questão de agradecer nas redes sociais o apoio dado pelo Brasil ao posicionamento do governo de Netanyahu contra qualquer intromissão do Tribunal. Numa nota pública, os dois governos também tocaram no assunto. «Os ministros Ashkenazi e Araújo intercambiaram ideias sobre questões urgentes da agenda internacional e concordaram em dar prosseguimento à coordenação entre Brasil e Israel», afirmou. «Eles discutiram os desenvolvimentos recentes no Tribunal Penal Internacional (tpi), no Conselho de Direitos Humanos (cdh) e em outros fóruns», indicou a nota6.«O Ministro Ashkenazi expressou o profundo apreço de Israel pela posição consistente e de princípio do Brasil de que a abertura de uma investigação no tpi é um desserviço à causa da justiça, o que enfraquecerá as perspectivas de um acordo negociado para o conflito israelense-palestino», completou.

O Brasil não era o único país que criticava o tpi. Mas sua decisão de sair ao resgate de Israel refletia uma postura nova em relação à corte. Ao contrário de Israel, o governo brasileiro ratificou o Acordo de Roma e reconhece sua jurisprudência.

Espionagem internacional

A aliança entre o governo de extrema direita no Brasil e Netanyahu ia além. A busca por ferramentas capazes de espionar opositores levou aliados de Jair Bolsonaro e seus filhos a promover uma aproximação a empresas israelenses e membros do governo de Israel. O israelense esteve na posse de Bolsonaro, enquanto delegações realizaram visitas frequentes, entre 2019 e 2022. Algumas das viagens foram permeadas por polêmicas, como a ida do então chanceler Ernesto Araújo para Israel, supostamente para negociar a compra de um «spray nasal» que seria usado contra a covid-19. O projeto jamais se concretizou.

Mas um setor sempre esteve nas pautas entre os dois governos: a espionagem. Uma das tentativas de negociação ocorreu em novembro de 2021, quando delegações de ambos os países compareceram numa das maiores feiras aeroespaciais do mundo, conhecida como Dubai Airshow. Um integrante do governo Bolsonaro entrou no estande de Israel com o interesse de municiar seus aliados nacionais com uma poderosa ferramenta espiã, para ser usada, em especial, na eleição de 2022.

Pouco antes do encontro em uma sala privativa no espaço cedido por Israel, o então presidente Jair Bolsonaro cumpria uma das agendas de sua viagem aos Emirados Árabes em novembro de 2021: a inauguração, no mesmo evento, do «pavilhão Brasil».

No estande de Israel, porém, o membro de sua administração, perito em inteligência e contrainteligência, conversou com um representante da empresa Dark Matter.

A companhia com sede em Abu Dhabi, composta, em sua maioria, por programadores israelenses egressos da Unidade 8200 (força de hackers de elite vinculada ao Exército de Israel), desenvolveu sistemas capazes de invadir computadores e aparelhos celulares de alvos, inclusive estando eles desligados.

Em outra frente, o representante de Bolsonaro manteve conversas com a empresa Polus Tech, com o objetivo também de obter artefatos produzidos pela companhia. Com sede na Suíça, a Polus Tech tinha como ceo o programador israelense Niv Karmi, um dos ex-fundadores da nso Group, empresa dona da poderosa ferramenta espiã Pegasus, sendo o «n» da sigla.

Em maio de 2021, o vereador carioca Carlos Bolsonaro interveio em uma licitação promovida pelo Ministério da Justiça, para que o órgão contratasse o avançado programa de espionagem Pegasus. A aquisição do sistema, que constava no processo de instrução da disputa, contudo, foi frustrada após o interesse pela ferramenta vir a público e após o Tribunal de Contas da União (tcu) suspender a licitação.

A polêmica ferramenta virou notícia no mundo por ter sido utilizada por governos para espionar jornalistas, ativistas e inimigos políticos dos chefes de Estado. Segundo um consórcio de 17 jornais de dez países, ao menos 180 jornalistas chegaram a ser monitorados por meio do sistema Pegasus7.

Entre as propostas feitas ao Brasil, porém, uma delas continha uma carta assinada no dia 20 de março de 2019 por Mishel Ben Baruch, diretor do Ministério da Defesa de Israel e endereçada ao então ministro da Justiça, Sergio Moro.

Lula retoma postura tradicional, mas guerra é importada para o debate nacional 

Toda a rede de alianças entre Bolsonaro e Netanyahu, porém, seria alvo de um abalo a partir de 2023. Ao assumir o governo, Lula retomou a posição tradicional do país de apoiar a causa palestina, uma atitude que tem sido mantida na história diplomática do Brasil nos últimos 50 anos e que nem mesmo a ditadura militar (1964-1985) rompeu. Em seu primeiro mandato como presidente, há 20 anos, Lula lançou uma aproximação sem precedentes com os países árabes e foi o primeiro presidente brasileiro a visitar os territórios palestinos ocupados. Foi também sob sua gestão que o Brasil passou a reconhecer a existência do Estado palestino, com as fronteiras prévias a 1967.

Estrategicamente, ele começou a fazer doações regulares à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Médio (unrwa) e se tornou o único latino-americano a fazer parte da diretoria da agência da onu. A contribuição foi sua forma de introduzir o Brasil na política da região e credenciar sua diplomacia para sentar-se à mesa de debates no Oriente Médio. Com o atual estágio do conflito, os gestos de apoio de Lula à causa palestina têm se proliferado. Como presidente do Conselho de Segurança da onu, em outubro de 2023, o governo brasileiro tentou coordenar a aprovação de uma resolução que pedia uma pausa humanitária. O texto recebeu amplo apoio e só foi vetado pelos Estados Unidos. Na época, o número de mortos em Gaza era de 3.200. No momento em que este texto está sendo escrito, o número de mortos é de mais de 31.000 pessoas. Na frente diplomática, o Brasil assumiu a tarefa de ser um dos líderes da campanha das autoridades de Ramallah para que a Palestina seja considerada membro pleno da onu, com poder de voto. Enquanto isso, visitou a embaixada palestina em Brasília para plantar uma oliveira e aceitou um convite da Fundação Yasser Arafat para ser um de seus conselheiros honorários. O governo brasileiro ainda multiplicou sua contribuição financeira para a unrwa, passou a ser seu vice-presidente do Conselho da organização e iniciou projetos de financiamento para pequenos agricultores palestinos.

Mas a defesa desses pontos na política externa não ocorre de firma maneira isolada. A diplomacia de Lula hoje vê o Oriente Médio como parte da redefinição da ordem mundial. Ao defender a causa palestina, Brasília não se limita a defender os territórios ocupados. O que o presidente está fazendo é enviar uma mensagem explícita às potências ocidentais sobre a necessidade de reconhecer que a lógica colonial se esgotou e de defender o direito internacional. Apresentar-se como um suposto porta-voz das minorias, dos excluídos ou das populações vulneráveis fortalece ainda mais sua busca por posicionar o Brasil como um legítimo representante do mundo em desenvolvimento. O objetivo é explícito: colocar o Brasil na mesa dos artífices das regras e da ordem mundial no século xxi. Para esse fim, como corolário de Gaza, sua diplomacia defende uma reforma urgente do Conselho de Segurança e a admissão de que a atual estrutura de governança global falhou. Embora suas iniciativas tenham sido aplaudidas pelas alas mais progressistas do Brasil, sindicatos e grupos de direitos humanos, a postura de Lula foi rapidamente transformada em mais um campo de batalha ideológica na acirrada política interna. Correndo o risco de ser preso, Bolsonaro não está apenas buscando apoio dos judeus brasileiros. Ele está usando a questão para manter seu amplo apoio mobilizado entre o poderoso movimento evangélico, que tem Jerusalém e sua identificação com Israel como pedra angular de sua teologia. Herdeiros dos neopentecostais americanos, os grupos brasileiros consideram que ir contra Israel é trair a Deus.

Não é coincidência que Israel e Netanyahu tenham desempenhado um papel importante na política externa fracassada de Bolsonaro. O israelense foi um dos poucos líderes estrangeiros presentes na posse de Bolsonaro em 2019 e, ao longo dos quatro anos, recebeu diversas delegações do ex-presidente. No dia nacional do país, 7 de setembro de 2022, a então primeira-dama, Michele Bolsonaro, fez questão de declarar: «Deus abençoe Israel».

O líder de extrema direita até tentou transferir a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, o que violaria as resoluções da onu e o direito internacional. Mas isso consolidaria uma aliança com Israel e, ao mesmo tempo, aumentaria sua popularidade entre os evangélicos brasileiros. Somente o dinheiro o impediu de fazer a mudança de endereço. A mudança da embaixada significaria que, para o Brasil, Jerusalém seria considerada a capital de Israel. Imediatamente, os governos árabes alertaram que haveria consequências comerciais para o Brasil, com a suspensão da compra de carne e produtos agrícolas do país para o mercado milionário dos países de maioria muçulmana. Contando principalmente com os recursos do agronegócio no Brasil para garantir suas campanhas, Bolsonaro desistiu da ideia de Jerusalém. Na época, Netanyahu havia se tornado uma espécie de destino para a extrema direita mundial, cortejando os líderes populistas da Europa e se apresentando como parte da ofensiva de líderes iliberais. Não se tratava apenas de um cálculo geopolítico. Foi uma abordagem baseada no fato de que todos eles compartilham uma hostilidade aberta aos conceitos de expansão dos direitos humanos, igualdade e acolhimento de estrangeiros. 

Portanto, quando o chão treme em Gaza por causa de uma bomba, a terra treme no Brasil também.

  • 1.

    «Em carta a Bolsonaro, Netanyahu critica Lula e diz que ‘sua amizade é ainda mais importante em tempos de crise e guerra’» em CNN Brasil, 12/3/2024.

  • 2.

    «Dois terços dos edifícios de Gaza foram destruídos ou danificados na guerra, diz onu» EM AFP, 30/9/2024.

  • 3.

    The Presence of Brazil in the un Peacekeeping Mission in Gaza (1957-1967), MRE, Brasília, 2022.

  • 4.

    Ibid.

  • 5.

    Ibid.

  • 6.

    J. Chade: «Brasil e Israel se unem contra Tribunal Internacional» em UOL, 8/3/2021.

  • 7.

    J. Chade: «Espionagem aproximou israelenses ao governo Bolsonaro» em UOL, 25/1/2024.

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista
ISSN: 0251-3552
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