As esquerdas e a «confusão democrática»
Nueva Sociedad 2019 / Dezembro 2019
A guinada à direita na América Latina tende a ameaçar a estabilidade já em perigo das democracias do
continente. No entanto, os rumos autoritários também provêm das experiências de alguns governos rotulados como «progressistas», fortemente desafiados pelo esgotamento de seus modelos e pelo clamor popular. As esquerdas latino-americanas voltam a ser interpeladas em profundidade pela «questão democrática». Nesse marco, o próprio conceito de democracia está novamente em questão.
Algumas chaves históricas de longa duração
Entre meados do século xviii e o final do século xix, quando era definida boa parte da modernidade política no Ocidente, a popularização do conceito «democracia» na linguagem política ibero-americana deu-se de maneira lenta e disputada1. Embora tenha mantido sua polissemia e até sua equivocidade, a voz foi-se constituindo gradualmente em um conceito político fundamental, carregado de perguntas e sentidos. Nesse marco, como bem disse o historiador espanhol Javier Fernández Sebastián, foi um «vocábulo proteico», que pôde fazer parte, em especial durante a segunda metade do século xix e início do século xx, de sintagmas cruciais.Essa dimensão de conceito em disputa foi uma das razões para que o substantivo «democracia» fosse requerendo – cada vez mais – numerosos adjetivos. Sobre isto Fernández Sebastián afirmou: «Compreende-se que o permanente desacordo de fundo acerca do conceito e sua intrínseca (...) amplitude obrigassem, em muitos casos, o recurso a uma generosa adjetivação. Aos já conhecidos qualificativos individualista e socialista, somam-se muitos outros, como democracia moderna, democracia liberal, democracia operária, democracia popular, democracia radical, democracia tumultuária, democracia burguesa, etc.»2.
Por trás daquele intenso debate, havia um conjunto de contendas políticoconceituais: as tensões entre as ideias de república e democracia, aquelas vinculadas ao «desdobramento» da sempre escorregadia categoria «povo», as várias significações em disputa em torno da noção de soberania, as raízes do crescente prestígio da ideia de democracia social e a associação entre democracia e um frouxo apelo ao progressismo. Mas foi sua disputa conceitual com a complexa questão da representação e da interpelação dos paradigmas liberais que permitiu uma gradual reabilitação discursiva de uma palavra que muitos denunciavam como hipócrita. Foi nessa tensão conceitual que nasceram sintagmas decisivos, como «democracia representativa» e «democracia liberal». Através deles, começou a ser aceita a noção de que se podia ir rumo a uma forma de regime de governo misto ou combinado, em que a adscrição temida da voz «democracia», associada ao poder ilimitado e direto do povo, podia dar espaço a uma visão de maior moderação, após uma sorte de atenuação antijacobina ou elitista do governo do povo.
Se projetamos o conceito já consolidado de democracia na América Latina do século xx, seu sentido proteico se aprofunda ainda mais. Em tensão com as distintas tradições que as culturas políticas do continentes já possuíam – incluindo caudilhismo, militarismo, regimes oligárquicos, reformismos mais ou menos liberais ou populares, os populismos «nacional-populares» que vieram mais tarde e as leituras diversas sobre o tema a partir da esquerda e da direita em suas diferentes versões, sobretudo a partir dos marxismos, por um lado, e da direita antiliberal e até protofascista, por outro –, não foi simples para nenhum regime ou ator político desvincular-se de toda invocação do conceito, muito menos aceitar sua dissidência radical contra ele. Algo deste último aspecto pôde ocorrer do final da década de 1950 até o final da de 1970, quando o aquecimento da Guerra Fria em todo o continente habilitou atores e posturas ideológicas claramente tingidos por uma retórica e uma prática ostentosamente antidemocráticas: embora a partir de horizontes contrapostos, tenderam a coincidir nesses posicionamentos as ditaduras da Doutrina de Segurança Nacional (promovidas pelos Estados Unidos e inauguradas com o golpe de Estado de 1964 no Brasil) e as direitas nacionalistas e antiliberais (em ocasiões até mesmo fascistas), assim como as esquerdas foquistas e marxistas-leninistas.
As tragédias ocorridas após as guerras civis, os violentismos prometeicos e, de maneira particular, os terrorismos de Estado perpetrados entre as décadas de 1960 e 1980 foram o suporte fundamental para uma revalorização geral da democracia por parte de quase todos os atores, como consenso básico das transições. Ainda nesses momentos de convergências antiditatoriais, não faltaram dissidências sobre esse ponto à direita e à esquerda, mas foram marginais. As transições democráticas, ainda com suas importantes diferenças quanto aos temas cruciais da justiça e da verdade em relação às violações dos direitos humanos, tenderam a apontar para um «acordo de regime» básico sobre a democracia como plataforma política para instalar as competições ideológicas. O impacto da queda do socialismo real no continente, como em quase todo o Ocidente, também apontou nessa direção, embora os rumos radicais do neoliberalismo e do neoconservadorismo dos anos 90 logo tenham solapado as bases sociais do acordo.
De todo modo, a assinatura da Carta Democrática Interamericana por todos os países americanos (com a exceção de Cuba, marginalizada na Organização dos Estados Americanos, oea), nada menos que em 11 de setembro de 2001, na cidade de Lima, pôde simbolizar o último marco desse momento de relativa convergência de olhares. Esse documento estabeleceu um acordo básico em termos procedimentais, relacionado com o avanço da democracia representativa, em defesa de sistemas políticos em que os cidadãos pudessem eleger livremente seus governantes e representantes em eleições competitivas e transparentes. Apesar disso, não se deve esquecer que esse acordo foi também firmado com entusiasmo por Hugo Chávez e expressava a inscrição do continente naquela que na época era chamada de «terceira onda democrática».
O «desacordo de regime» e a erosão do apoio aos valores democráticos
O que ocorreu durante o século xxi no panorama político latino-americano tem a ver, em princípio, com a continuidade geral – com certos casos de exceção preocupantes – de democracias eleitorais no continente. Dada a história latino-americana, essa circunstância não é um fato menor. Mas não se deve ignorar a persistência de situações de crescente instabilidade política, incluindo a sucessão de «golpes suaves», desvios autoritários de governos eleitos, processos de confrontação política de viés excludente, crises dos partidos e das formas da representação e processos incrementais de personalização da política, com o desprestígio das instituições democráticas em geral. Nesse contexto, e a partir do que foi vivido nos últimos anos, a perspectiva de um progressivo «desacordo de regime» em torno do que concebemos como democracia emergiu como um problema central na América Latina. A legitimidade de origem foi se distanciando da legitimidade de exercício, e isso atravessou governos de direita e de esquerda, além inclusive dos vaivéns das retóricas em constante mudança ao redor do populismo de uns e outros.
Isto já não é um problema das elites; penetrou mais profundamente na opinião pública, como vêm indicando ano após ano diversas medições internacionais. Em consonância com fenômenos cada vez mais frequentes em escala mundial, os itinerários no continente do nível de apoio à democracia e de satisfação com o seu funcionamento marcaram rumos de instabilidade nas últimas décadas, tendência que se aprofundou nos últimos cinco anos. Esse quadro de desencanto e suspeita, essa maré antipolítica, tão propensa ao surgimento de lideranças redentoras e de suas arcádias regressivas, tendeu a se radicalizar nos últimos anos, como indicam diversos estudos sobre simpatia e prestígio de atores, instituições e comportamentos tradicionalmente associados à vigência da vida democrática3.
Na América Latina, as discussões sobre os desafios da «questão democrática» vincularam-se nas últimas décadas com três momentos históricos muito distintos: a) a interpelação e os efeitos residuais dos processos de transição à democracia, após as ditaduras da Segurança Nacional; b) o desencanto dos procedimentos de reação e das democracias limitadas da década de 1990, com suas ortodoxias e desigualdades renovadas após as crises econômicas; e c) os processos de crise mais ou menos radical dos governos de viés progressista que ascenderam por volta de 2000, em especial na América do Sul. A partir do que foi acumulado nesses três momentos de características tão diferentes, a perda do «acordo de regime» sobre a democracia tende a coincidir hoje na região com a hegemonia crescente da direita radical no campo conservador, alentada pela reorientação extremista da política hemisférica dos eua protagonizada pelo governo de Donald Trump e seus falcões (Elliot Abrams, Marco Rubio, John Bolton até pouco tempo atrás).
O centro político (que, recordemos, não necessariamente coincide com o centro ideológico) tende a desaparecer, e a direita tradicional enfrenta a tentação de se tornar (ou ser superada pela) ultradireita. Os exemplos de Jair Bolsonaro no Brasil, Iván Duque na Colômbia e Juan Orlando Hernández em Honduras marcam essa combinação tensa entre neopatriotismo, ultraliberalismo no campo econômico, conservadorismo social e moral forte e militarização crescente na condução do Estado4. Certamente, essa nova equação busca se associar ao impacto de processos diversos: a nova realidade econômica regional e internacional com suas reorientações liberais; o auge dos chamados agronegócios e seu modelo extrativista, orientado às exportações de alimentos e minerais não processados; a mudança ideológica de alcances ainda incertos na região e no mundo; a crescente afluência ao continente de correntes neopentecostais, com sua agenda regressiva no plano dos direitos5; a implosão dos regionalismos e da aspiração de exercer papéis de autonomia no contexto global. Nesse marco, parecem ter expirado as coalizões social-desenvolvimentistas presentes em vários países do continente durante a «década dourada» (2004-2014).
A partir de uma perspectiva histórica que vincule esses três momentos constitucionais (em referência à teoria de Bruce Ackerman)6 resenhados anteriormente, sem menosprezar o influxo central de outros fatores de poder sem dúvida decisivos, cabe questionar quanto dessa nova realidade latino-americana de guinada direitista não foi facilitada por inegáveis déficits políticos e democráticos que marcaram a experiência dos governos progressistas nas décadas passadas. São muitas as perguntas que surgem nesse sentido, em especial a partir de experiências não suscetíveis de uma consideração uniforme.
De que maneira buscou-se redefinir os vínculos entre os cidadãos e a política nos novos contextos «progressistas»? Sob quais formas, instituições e procedimentos tendeu-se a estabelecer os novos pactos de cidadania em sociedades impactadas pelas redes sociais e por fortes poderes fáticos extrainstitucionais? Foram respondidas as contas pendentes deixadas pelas ditaduras, relativas a verdade e justiça, redemocratização das Forças Armadas e renovação dos sistemas judiciais em consonância com as novas realidades e com o direito internacional dos direitos humanos? Como tenderam a se rearticular na região o conceito de homogeneidade cultural (próprio do modelo clássico e universalista de cidadania) e os desafios emergentes do multiculturalismo e dos Estados plurinacionais? Que lugar efetivo foi dado à chamada «agenda de novos direitos», vinculada à situação de atores e coletivos amplamente postergados e invisibilizados? Como se reconceituou a perspectiva dos direitos humanos e dos direitos sociais para nela incluir, de maneira central, uma consideração mais integral da pobreza, da indigência e de seus vetores de injustiça radical no continente mais desigual do planeta? Tentou-se reformular a noção de Estado, dos modelos de desenvolvimento e das políticas públicas para dar um sustento consistente a essas demandas inadiáveis? Como se combateu claramente o fenômeno devastador e generalizado da corrupção, que na atualidade mais próxima configura uma fonte incontornável de descrédito dos políticos e de desencanto em torno dos valores democráticos? Certamente, essa lista sintética de perguntas interpela o conjunto das sociedades e dos sistemas políticos do continente. Mas, a partir da oportunidade do exercício de governo (em alguns casos, pela primeira vez) e de suas promessas de mudanças profundas, não há dúvida de que a interpelação era mais decisiva e primordial para as esquerdas e o progressismo. Não era preciso conhecer o que ocorria após o «auge das commodities» e sua bonança para perceber que, na disputa pela liderança do aprofundamento democrático, esses atores tinham uma tarefa estratégica.
Entre golpes suaves e progressismo autoritário
A partir do alarme soado pelos recentes acontecimentos vividos ou ainda em andamento em vários países (Venezuela, Brasil, Honduras, Guatemala, Peru, Paraguai) e dos perfis autoritários e confrontativos exibidos pelos contextos políticos de outros processos latino-americanos, a hipótese antes descartada de um continente que poderia, de forma progressiva, tender a uma nova era de ditaduras ou autoritarismos cívico-militares (diferentes dos da década de 1970) infelizmente voltou ao centro do debate. Confluem nessa perspectiva inquietante os rumos autoritários de vários governos (de direita e de esquerda, conservadores e «progressistas»), assim como o crescente empoderamento dos exércitos e o surgimento de forças paramilitares como último apoio de regimes esgotados. Também jogam nessa direção os embates polarizadores de oposições irredutíveis, o avanço profundamente deslegitimador de fenômenos de corrupção generalizada, assim como o acelerado retorno daquelas que no final do século xx e início do xxi já eram chamadas de «democracias de baixa intensidade» ou «democracias incertas». Como destacava o relatório sobre o estado da democracia na América Latina apresentado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (pnud) há 15 anos, no início da «década dourada» na América do Sul: « Até mesmo em regiões onde o sistema legal tem atuação, ele costuma ser aplicado com características discriminatórias contra várias minorias e também maiorias, tais como as mulheres, certas etnias e os pobres. Esse sistema legal truncado gera o que se denominou de uma cidadania de baixa intensidade»7.
Do ponto de vista do progressismo mais especificamente sul-americano, já no final de 2009 o chileno Luis Maira expressava sua surpresa com a «avaliação insuficiente» e com a «limitada compreensão» que, segundo ele, as elites intelectuais e governantes sul-americanas haviam tido frente à magnitude e as consequências da crise global de 2008. Após ressaltar o papel muito gravitante que as usinas do pensamento neoconservador tiveram na ascensão das forças políticas de direita nas últimas décadas, Maira advertia que, com a mudança de ciclo, nada similar havia ocorrido no campo adversário, o que, em sua opinião, tinha muita importância na hora de sustentar as possibilidades de retorno de «uma etapa pós-neoconservadora na região».
Depois de citar a conhecida opinião de Immanuel Wallerstein segundo a qual o governo de Barack Obama podia, paradoxalmente, ser funcional ao «momento da vingança da direita», Maira destacava que um eventual efeito pendular podia ser favorecido pela ausência de pensamento estratégico dos governos e partidos que haviam protagonizado a mudança política dos últimos anos no subcontinente sul-americano. «A pergunta é – concluía Maira – se ainda temos tempo de corrigir as falhas de caracterização da crise e recuperar a iniciativa política, enfatizando naquelas ideias a força que a maioria dos balanços acadêmicos e políticos destaca»8.
Quase uma década depois, e com a guinada política «contrarreformista» em plena expansão pelo continente, suas indicações à época parecem assumir agora certo ar profético. Os progressismos, apesar de suas conquistas inegáveis em campos como a redistribuição econômica e as políticas sociais, em outras áreas decisivas preferiram roteiros menos desafiadores, como nas reformas políticas de aprofundamento genuinamente democrático (sem armadilhas nem confusões), nas alternativas regionalistas de inserção internacional e na exigência de novas ideias e projetos para um desenvolvimento diferente, que combinasse sustentabilidade ambiental e econômica com equidade social9.
Devem-se somar a isto certas evidências de que a guinada atual à direita e o rumo que se visualiza não parecem configurar outra simples alternância, própria de toda democracia, na história contemporânea da América Latina. Registram-se propostas e orientações, em muitos casos extremistas, que parecem apostar na destruição do que foi deixado pelo ciclo progressista e na consolidação de regimes de ruptura, de caráter democrático muito duvidoso. Uma vez mais, o que se deveria perguntar é se as fraquezas e omissões dos governos progressistas em questões fundamentais da mudança política e social que propunham não convergiram para facilitar a guinada atual.
Na contramão de algumas propostas simplistas, as demandas constituintes para uma nova liderança democrática das esquerdas e dos progressismos latino-americanos não se esgotam no apelo – com frequência retórico – a maiores canais de participação social, como via de configuração de uma «democracia participativa» que tenderia paulatinamente a substituir a «democracia representativa» clássica. Não se consegue uma democracia mais participativa empoderando (e cooptando) os militantes e grupos afins contra uma oposição estigmatizada. Tampouco se constrói multiplicando pronunciamentos plebiscitários (com frequência montados e até mesmo desconhecidos quando são adversos) nem colocando em xeque os âmbitos da representação. Menos ainda tentando construir lógicas de decisão comunalistas, contrárias ao império da soberania popular10. Qualquer forma de exercício autoritário e excludente do poder (mesmo com lógicas assistencialistas), como se viu nos últimos 15 anos, apesar das melhorias na redistribuição, se não tiver como meta mudanças estruturais que também tenham a ver com reformas institucionais de aprofundamento democrático e de acordos de regime com os adversários, acaba não consolidando as transformações.
Em vários países do chamado «grupo bolivariano» (Venezuela, Equador, Bolívia, Nicarágua), a ascensão de governos progressistas após as democracias limitadas dos anos 90 legitimou-se, entre outras coisas, pela proposta de mudanças constitucionais de perfil de refundação, com fortes modificações – em certos aspectos, de caráter rupturista – em relação às institucionalidades anteriores. A partir de vários elementos convergentes (como a institucionalização de lideranças encarnadas através do fortalecimento do presidencialismo; o recurso, em alguns casos, da reeleição indefinida; e a adoção de mecanismos mais participativos, entre outros), as soluções constitucionais e as práxis que vieram depois delas não foram, no entanto, idênticas. Embora, quase sempre com intencionalidade estigmatizante, todas as esquerdas e todos os progressismos latino-americanos tenham sido qualificados com frequência de «populismos», as experiências até mesmo dos regimes refundacionais marcaram também diferenças. Nesse sentido, é errôneo incluir em um pacote homogêneo a chamada «democracia participativa e protagônica» do chavismo e sobretudo do madurismo, o «Estado plurinacional» da Bolívia de Evo Morales e a «Revolução Cidadã» de Rafael Correa, rompida por seu sucessor Lenín Moreno. De todo modo, além de sua diversidade, todas essas experiências apresentaram déficits democráticos inegáveis. Para citar alguns exemplos: os problemas de sucessão e os personalismos autoritários forjados após o fenômeno das lideranças encarnadas (nas quais o projeto tende a se identificar com um líder de perfil messiânico); a erosão de princípios democráticos essenciais, como os da soberania popular, e as restrições frente à concentração de poder, através de práticas de manipulação e arbitrariedade; a suspensão da autonomia e ainda o desconhecimento da independência de movimentos e agentes da sociedade civil; os enfrentamentos frequentes com o Poder Judiciário; o empoderamento dos militares e, nos casos venezuelano e nicaraguense, a afirmação – legal ou extralegal – de corpos paramilitares, apresentados como garantes últimos da continuidade de regimes qualificados como «cívico-militares»; a deslegitimação persistente e o não reconhecimento pleno da interlocução dos partidos e movimentos opositores, entre outros.
Mas o tema dos déficits democráticos também abrangeu a experiência de outros governos de esquerda e progressismos nacional-populares mais clássicos. Em meio a uma verdadeira pandemia continental, os fenômenos de corrupção afetaram transversalmente os sistemas políticos, com um forte impacto no Brasil e na Argentina. Além dos abusos e perseguições judiciais, que existiram e continuam existindo11, há evidências fortes e comprovadas de episódios muito graves nesse sentido. Isto apenas ratifica a velha máxima de que «a corrupção não é de esquerda nem de direita», mas também o fato de que seu impacto sobre a primeira é sempre muito mais devastador e perdurável em termos de deslegitimação política. No Brasil, os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff não puderam – nem souberam – avançar na reforma política, claramente indispensável para construir um formato de governabilidade sustentável frente à fragmentação geral do sistema de partidos e à existência de bancadas transversais (como a ruralista e a evangélica), por certo muito adversas. No Chile, além dos balanços que possam ser feitos sobre as três grandes reformas do segundo governo de Michelle Bachelet (constitucional, educativa e fiscal), o último governo da Nova Maioria terminou com a divisão das esquerdas chilenas12 e com o que Joaquín Brunner chamou com eloquência de «fim da ilusão»13. Na Nicarágua, os rumos do regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo, com políticas neoliberais e práticas de terrorismo de Estado contra os opositores, ameaça apagar o legado da Revolução Sandinista de 197914. Em El Salvador, a ascensão espetacular o novo presidente Nayib Bukele, surgido da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (fmln) mas que depois formou um novo partido afim a um enfoque de novas direitas, rompeu com a continuidade do bipartidarismo tradicional vigente por três décadas. Mesmo no Uruguai, que costuma ser apresentado como a exceção no quadro dos governos progressistas, a atual conjuntura eleitoral mostra fortes incertezas, geradas, entre outros fatores, por múltiplas insatisfações com o terceiro governo da Frente Ampla15.
O quadro catastrófico da situação na Venezuela – cujo desfecho ainda era incerto quando este artigo foi escrito –, assim como o novo beco sem saída no qual Cuba parece ter entrado, empurrada sem dúvida pela nova política de Trump e sua obsessão pela derrubada da «tríplice tirania»16, só fazem dramatizar ainda mais o balanço recente e os desafios de curto e médio prazos para a ação das esquerdas e dos movimentos progressistas latino-americanos.
As esquerdas e os novos filtros conceituais para evitar a confusão democrática
Como se sabe, os debates acadêmicos e ideológicos sobre as definições da democracia, além de serem eternos, vivem agora uma conjuntura especialmente agitada. Deve-se hoje enfrentar um novo problema que Giovanni Sartori qualificava, há décadas, como o da «confusão democrática»: sob o rótulo prestigioso da democracia, são passados conteúdos e práticas muito pouco democráticos, o que aumenta a necessidade de um olhar rigoroso e atento. Na América Latina, como demonstram de maneira indiscutível muitos processos contemporâneos, a confusão democrática converge num forte «desacordo de regime» sobre a democracia, que inclusive corre o risco – como foi ressaltado – de evoluir em vários países para uma hipótese de ruptura de caráter antidemocrático.
Considerando as dificuldades e o aspecto indesejável de qualquer posição absolutista ou puramente normativa em sociedades democráticas, no momento de respeitar a heterogeneidade da América Latina contemporânea, não se pode aspirar a receitas aplicáveis a contextos tão distintos. O que se pode conseguir (e inclusive é mais indispensável) é a renovação de uma discussão político-intelectual de projeção efetivamente internacional, na qual seja possível debater de maneira consistente e sem hipocrisias sobre certos filtros conceituais indispensáveis para a qualificação de uma democracia genuína17. Isto visa, por exemplo, a precisar com rigor o que pertence ou não ao âmbito da política democrática; como incorporar as dimensões de gênero, territoriais, comunitárias e étnicas para forjar novos sistemas políticos que legitimamente possam reivindicar sua condição inclusiva; quais regras e comportamentos preservam a possibilidade do exercício em plenitude da soberania popular, a não concentração do poder, a independência dos poderes, a prestação de contas e a normalização da alternância no governo. Também significa analisar a qual democracia aspiramos e como é que ocorreram as que o são através das vicissitudes de nossas histórias. Implica, em sua dimensão mais profunda, a rediscussão da legitimidade do poder e de seu exercício concreto no dia a dia. Depois de tudo o que ocorreu na região e no mundo nas últimas décadas, os usos conceituais da democracia requerem limites e alcances mais precisos e profundos que em décadas anteriores. E isso tem a ver, entre outras coisas, com o fato de que a centralidade da demanda tornou-se mais difícil de argumentar. Talvez ainda não possamos saber os traços que definirão as novas democracias do século xxi, mas sabemos decididamente o que elas não podem ser.
Os índices definidores e operativos de uma democracia enfrentam atualmente desafios importantes, em certos aspectos inéditos. Os indicadores tradicionais de autores clássicos como Robert Dahl (direito a voto, direito de ser eleito, direito à competição política, eleições livres e justas, liberdade de associação, liberdade de expressão, existência de fontes alternativas de informação, solidez das instituições, sustentabilidade das políticas públicas, etc.), em sua aplicação concreta às condições de muitos países do planeta, enfrentam exigências renovadas. Se por um lado está claro que em um continente como a América Latina as definições procedimentais minimalistas sempre são importantes, mas também insuficientes, a aplicabilidade e a conceptualização de definições de democracia a partir de opções complicadas ou maximalistas (que incorporam outros indicadores, como as exigências de que os governantes eleitos tenham poder efetivo para governar ou que existam certos níveis básicos de equidade socioeconômica e altos níveis de participação popular) também veem-se interpeladas a partir de diversas perspectivas. Tome-se o exemplo da amplificação dos debates em torno da ideia da justiça, desde tradições como a do pensamento de John Rawls até elaborações mais contemporâneas como as que aparecem nos trabalhos de Amartya Sen.
As mutações da democracia na América Latina, inscritas, por certo, em processos que são globais mas que têm particularidades regionais, geram hoje desafios novos e incertos, e também radicais. Na erosão das convicções democráticas, na renúncia à ética como princípio de identidade e no respaldo internacional a regimes claramente ditatoriais18, as esquerdas e os progressismos latino-americanos podem perder a legitimidade duramente obtida durante décadas na promoção das lutas populares e na resistência às ditaduras do terrorismo de Estado. Como foi mencionado, a questão democrática volta a ser um eixo de interpelação central, e o que for feito frente a situações dramáticas como a da Venezuela atual pode comprometer por muitos anos o futuro das esquerdas no continente. E isso está ocorrendo justamente quando é mais indispensável uma liderança democrática indiscutível e sem obstáculos, sem relativismos nem padrões duplos, em momentos em que o que volta a estar em jogo no continente é exatamente isto: a democracia política e social como sustento da convivência e dos direitos, das liberdades e da igualdade, em particular para os mais despossuídos.
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1.
Gerardo Caetano: é historiador e cientista político. É doutor em História pela Universidade Nacional de La Plata (unlp), Argentina, e professor titular da Universidade da República (udelar), Uruguai. É coordenador do Observatório de Conjuntura Política do Instituto de Ciência Política da udelar e pesquisador nível iii do Sistema Nacional de Pesquisadores do Uruguai. Preside o Conselho Superior da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso).Palavras-chave: democracia, direita, esquerda, soberania popular, América Latina. Nota: a versão original deste artigo foi publicada em espanhol em Nueva Sociedad No 281, 5-7/2019, disponível em ‹www.nuso.org›. Tradução de Eduardo Szklarz.1. Javier Fernández Sebastián (dir.): Diccionario político y social del mundo iberoamericano ii, Universidade do País Basco-Centro de Estudos Políticos e Constitucionais, Madri, 2014.
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2.
J. Fernández Sebastián: «Democracia» em J. Fernández Sebastián e Juan Francisco Fuentes (dirs.): Diccionario político y social del siglo xix español, Alianza, Madri, 2002, p. 225.
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3.
A esse respeito, podem-se ver rankings como os da Freedom House (www.freedomhouse.org/); Polity Project (www.cidcm.umd.edu/polity/index.html); os dados da corporação Latinobarómetro (www.latinobarometro.org/); os indicadores de governança do Banco Mundial (www.worldbank.org/wbi/governance/govdata2010/), entre outros.
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4.
Sobre este último tema, v. «¿Otra vez los militares? Democracia, inseguridad, ciudadanía», Tema Central de Nueva Sociedad No 278, 11-12/2018, disponível em www.nuso.org.
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5.
Sobre este tema, v. «El nuevo evangelismo político», Tema Central de Nueva Sociedad No 280, 3-4/2019, disponível em www.nuso.org.
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6.
Ver B. Ackerman: We the People 1: Foundations, Harvard up, Cambridge, 1993.
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7.
pnud: «La democracia en América Latina», pnud, Buenos Aires, 2004, p. 48.
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8.
L. Maira: «¿Cómo afectará la crisis la integración regional?» em Nueva Sociedad No 224, 11-12/2009, disponível em www.nuso.org.
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9.
Ver G. Caetano: «Desigualdad, desarrollo e inserción internacional. Una mirada crítica sobre la ‘década social’ y el ‘ciclo progresista’ en América Latina» em Estudios Interdisciplinarios en América Latina y el Caribe (eial) vol. 29 No 1, 2017.
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10.
Margarita López Maya: «Socialismo y comunas en Venezuela» em Nueva Sociedad No 274, 3-4/2018, disponível em www.nuso.org.
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11.
A propósito do «caso Lula», v. Carol Proner, Gisele Cittadino, Gisele Ricobom e João Ricardo Dornelles (orgs.): Comentarios a una sentencia anunciada: el proceso Lula, Clacso / Praxis, Buenos Aires, 2018.
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12.
Isto originou três candidaturas no primeiro turno: Alejandro Guillier (pela coalizão governista na época), Beatriz Sánchez (pela nova coalizão Frente Ampla) e novamente Marco Enríquez Ominami (pelo Partido Progressista).
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13.
J.J. Brunner: Nueva Mayoría. Fin de una ilusión, Ediciones b, Santiago, 2016.
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14.
Deve-se notar a presença de um sandinismo dissidente há duas décadas, com figuras centrais da Revolução Sandinista como Ernesto Cardenal, Sergio Ramírez e Mónica Toledano, entre outros. A este respeito, v. https://memoriasdelaluchasandinista.org.
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15.
G. Caetano: «¿Milagro en Uruguay? Apuntes sobre los gobiernos del Frente Amplio» em Nueva Sociedad No 272, 11-12/2017, disponível em www.nuso.org.
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16.
Sob esse apelo, o governo de Trump e seus falcões da política exterior em relação à América Latina priorizaram seus objetivos de curto prazo na Venezuela, Nicarágua e Cuba.
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17.
Pierre Rosanvallon: La sociedad de iguales, Manantial, Buenos Aires, 2012.
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18.
É o caso dos pronunciamentos do Foro de São Paulo em relação a processos como os da Venezuela e da Nicarágua. Numa direção bem diferente, delinearam-se as adesões de partidos de esquerda latino-americanos em torno da convocação de uma Internacional Progressista, liderada pelo norte-americano Bernie Sanders.