Opinión
abril 2024

A dupla Alemanha
O que significa «razão de Estado»?

Disponible en español
<p>Las dos Alemanias, Israel y la razón de Estado</p>

Mais de três décadas após o fim da Guerra Fria, parece haver novamente duas Alemanhas. A primeira dessas duas versões da Alemanha é a República Federal tal como ela mesma se vê: democrática, liberal e comprometida com os direitos humanos e com uma ordem mundial baseada em regras. Em sua autopercepção, essa Alemanha apoia Israel, o Estado daqueles que sobreviveram aos crimes alemães, contra um ataque terrorista genocida e antissemita do Hamas realizado em 7 de outubro de 2023. Esta Alemanha está do lado certo da História.

A outra Alemanha está do lado errado da História. Essa é a Alemanha tal como a veem de fora, especialmente a maioria não ocidental do mundo. Essa Alemanha apoia a destruição de Gaza e de sua sociedade por meio das armas que fornece, de sua política pró-Israel e de sua diplomacia: tudo isso em nome de uma sinistra «razão de Estado» e de uma ideia moral que se baseia num confronto crítico com o passado da Alemanha, em que a empatia, na melhor das hipóteses, é destinada a apenas um lado.

Na segunda semana de abril, a Alemanha compareceu perante a Corte Internacional de Justiça em Haia e se defendeu contra uma queixa da Nicarágua, que a acusava de apoiar um genocídio israelense em Gaza. Note-se que o autoritário governo da Nicarágua não é exatamente o mais adequado para denunciar crimes contra os direitos humanos em outros lugares, mas o acontecimento em Haia pareceu, por um momento, levantar o véu de superioridade moral que o governo e a opinião pública da Alemanha haviam lançado sobre sua própria política para o Oriente Médio. A Alemanha é, depois dos Estados Unidos, o principal defensor de Israel, embora muitas pessoas na Alemanha ignorem isso completamente. De repente, o país foi confrontado com a visão que o Sul global tem dele: uma visão que a Alemanha, aliás, sabe ocultar muito bem.

Essa dupla Alemanha não pode se unir: a Alemanha tal como ela se vê é incompatível com a Alemanha tal como é vista de fora. Por isso, é hora de tentar uma explicação: o que explica o apoio quase incondicional da Alemanha a Israel? Para explicar não só a dimensão desse apoio, mas também por que a identificação unilateral com Israel (mesmo sob seu governo mais direitista) é vista na Alemanha como um certificado de credo antifascista, não precisamos apenas de uma explicação geopolítica, mas também de uma que se concentre na política do passado e seja crítica do racismo. Mas vamos por partes.

Geopolítica e razão de Estado

Poucos dias após o ataque terrorista do Hamas em outubro passado, um episódio sem precedentes no conflito do Oriente Médio, o chanceler Olaf Scholz declarou no Bundestag: «Neste momento só há um lugar para a Alemanha. O lugar do lado de Israel». Logo depois ele viajou para Israel e, ao lado do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, disse que foi «uma visita a amigos em tempos difíceis. A segurança de Israel e seus cidadãos é uma questão de Estado». Netanyahu, por sua vez, afirmou que os membros do Hamas eram os «novos nazistas». A implicação era clara: desta vez a Alemanha poderia ficar do lado certo da história para defender o Estado judeu contra os «novos nazistas».

O relato da segurança de Israel como razão de Estado alemã remonta a um discurso da antecessora de Scholz, Angela Merkel, perante o Parlamento israelense em 2008. Ali, a então chanceler afirmou que a segurança de Israel era «parte das razões de Estado da Alemanha». Isso de «parte» foi eliminado do acordo feito pela coligação de três partidos que hoje está no poder. A segurança de Israel está agora totalmente identificada com a razão de Estado alemã. Em outras áreas da política, não se utiliza o termo «razão de Estado», o que indica o quão central é a relação com o Estado judeu dentro da classe política alemã.

É importante não só recordar o discurso de Merkel, mas também lê-lo para compreender o que hoje se entende por «razão de Estado», essa expressão que não soa muito liberal e na qual se insere a política da República Federal em relação a Israel. Isto foi dito pelo social-democrata Rudolf Dreßler, que foi embaixador da Alemanha em Israel durante a Segunda Intifada. Em seu discurso no Knesset, Merkel falou principalmente da ameaça que o Irã e seu programa nuclear representavam para Israel. Apesar dos atentados suicidas da Segunda Intifada, os militantes palestinos não haviam conseguido varrer Israel do mapa, mas a situação seria potencialmente diferente, disse ela, com um Irã que tivesse armas nucleares. Hoje não é diferente.
Portanto, a expressão material mais importante da razão de Estado não são as armas alemãs, que também são utilizadas em Gaza. A razão de Estado, na verdade, desloca-se nas profundezas dos mares e pode ser armada com ogivas nucleares: a Alemanha fornece submarinos com capacidade nuclear a Israel desde o final da década de 1990. Seis desses submarinos estão atualmente em operação e, em 2022, foi assinado um contrato para outros três submarinos modernizados. Até o momento, esses componentes essenciais da Marinha israelense foram custeados total ou parcialmente pela Alemanha. Os submarinos têm pouco a ver com a guerra em Gaza ou com a situação na Cisjordânia, mas desempenham um destacado papel na estratégia de segurança regional de Israel, especialmente na dissuasão contra o Irã. Eles se encaixam numa longa história de apoio militar alemão a Israel.

Faz parte da lógica da «razão de Estado» classificar a guerra de Israel em Gaza como uma guerra proxy contra o Irã. Os especialistas alemães em política exterior ignoram sistematicamente o fato de que o Hamas não foi criado pelo Irã nem deve ser visto como um fantoche de Teerã. Apontam para a cooperação militar entre o Irã e a Rússia, assim como para a cooperação econômica entre o Irã e a China. A «guerra contra o terrorismo» com seu «Eixo do Mal» manda lembranças. A versão de uma guerra liderada pelo Irã quase desapareceu de cena nos últimos meses, pois mesmo na Alemanha o sofrimento em Gaza não pode ser completamente ignorado. No entanto, Teerã mudou novamente de rumo com seu ataque com mísseis e drones contra Israel na noite de 13 de abril, em resposta a um ataque israelense ao complexo da embaixada iraniana em Damasco.

A longa guerra nas sombras entre o Irã e Israel se desenrola agora num palco aberto. Por um lado, o Irã quebrou um tabu que existia desde 1991: desde Saddam Hussein, ninguém ousou atacar diretamente Israel. Por outro lado, o Irã deu a Israel e aos seus partidários a oportunidade de legitimar e assim continuar a guerra em Gaza como uma luta mais ampla contra o regime radicalmente anti-Israel de Teerã, um convite que também está sendo aceito na Alemanha.

Olhares da história

No entanto, seria míope demais explicar o grau de unilateralidade da visão da Alemanha sobre o Oriente Médio apenas em termos de sua posição contra o regime iraniano. Na política alemã para a região, a geopolítica e a política de reflexão sobre o passado estão interligadas de formas complexas. Num âmbito mais geral, a diferenciação entre um Ocidente pró-Israel e um Sul global pró-Palestina é explicada, ao menos em parte, pelas diferentes lentes históricas através das quais o conflito palestino-israelense é percebido. Para grande parte do Sul global, essa é a lente do colonialismo, através da qual Israel aparece essencialmente como um Estado colonial: um Estado ocidental fundado no Oriente Médio à custa da população local, que primeiro foi deslocada, depois sofreu ocupação e agora é bombardeada.

Os Estados ocidentais, por outro lado, percebem em grande parte o conflito entre Israel e Palestina através das lentes do Holocausto: Israel como um Estado de sobreviventes que deve ser protegido contra seus novos inimigos. Essa também é a razão pela qual é fácil, para muitas pessoas na Alemanha, colocar o bombardeio de Gaza numa relação histórica com o bombardeio de Dresden: por acaso não foi possível quebrar a vontade e a loucura da Alemanha nazista genocida e antissemita com a destruição de cidades inteiras e a morte de centenas de milhares de pessoas? Essa comparação tem certo potencial de exculpação para a Alemanha, mas certamente ignora o fato de que a Alemanha nazista era uma grande potência e o Hamas é apenas um dos muitos grupos armados e com motivação religiosa no Oriente Médio que se mantém oculto entre uma população civil inocente.

Absolvição e construção do Estado

Mas mesmo essas diferentes visões da história, por mais potentes que sejam, só podem explicar parcialmente a política específica da Alemanha para o Oriente Médio. Qualquer pessoa que queira entender plenamente a atual política da Alemanha em relação a Israel deve olhar para trás, para o período do pós-guerra. Aqui as relações germano-israelenses tomaram sua forma original. Quando os políticos alemães falam hoje sobre essas relações, eles gostam de falar de um «milagre de reconciliação» ou de uma «moral» relacionada com a política de reflexão sobre o passado que continua caracterizando essa relação até hoje. Ninguém melhor para desmitificar versões tão complacentes do que Konrad Adenauer, que, como chanceler fundador da República Federal, tinha em mente o objetivo de restaurar a soberania da Alemanha Ocidental vinculando-se ao Ocidente. No final de 1965, após Adenauer terminar seu mandato como chanceler, a televisão alemã lhe perguntou sobre sua política de reparações para Israel. Sua resposta surpreendentemente sincera foi:

«Cometemos tantas injustiças com os judeus, cometemos tantos crimes contra eles, que [esses crimes] tinham que ser expiados ou corrigidos de alguma forma se quiséssemos recuperar uma reputação entre os povos da Terra (…). Também não se deve subestimar o poder que os judeus continuam tendo até hoje, especialmente nos Estados Unidos».

Em primeiro lugar, Adenauer estava preocupado com a reputação: a política em relação a Israel era uma política de reabilitação. Em segundo lugar, essa ideia está ligada ao clássico preconceito antissemita do poder judaico, com o revelador acréscimo do «até hoje». Em suas origens, a política alemã em relação a Israel permitiu à Alemanha Ocidental produzir uma moralidade que não poderia gerar por si só. A Alemanha Ocidental da década de 1950 carregava consigo um fardo pesado: para este Estado, inclusive para a Chancelaria, trabalhavam pessoas que também haviam servido ao nacional-socialismo. O mesmo se aplica a outras elites: advogados, executivos de empresas, médicos e professores de universidades e escolas. Essa Alemanha Ocidental, que não podia ser genuinamente democrática e liberal, teve de dar, pelo menos ao mundo exterior, sinais de democracia e liberalismo, e nisso a política em relação a Israel era uma parte indispensável.

Isto leva à pergunta de por que precisamente Israel – um Estado que, no momento de sua fundação, tinha um terço de sua população composto por sobreviventes do Holocausto – buscou tão cedo contato com a Alemanha Ocidental e se aproximou dela, deixando de lado os mortos do passado. O que não pode ser explicado humanamente pode ser explicado pelos interesses de Estado. Após sua fundação, Israel era um país empobrecido, agrário, um experimento incerto num ambiente hostil. Precisava de ajuda econômica, armas e dinheiro. O país que estava disposto a conceder a Israel todas essas formas de apoio não foi nada menos que a República Federal da Alemanha. Tal como detalho no meu livro sobre o tema, o programa de reparações alemão ajudou a industrializar Israel, e as armas alemãs ajudaram a vencer guerras contra seus vizinhos. Até 1967, a Alemanha Ocidental foi a potência protetora mais importante de Israel, à frente dos Estados Unidos, que só se tornou patrocinador de Israel depois da guerra de junho de 1967. É uma fantástica ironia da história que antes dessa data este papel fosse desempenhado por ninguém menos que a Alemanha Ocidental.

A troca da absolvição da Alemanha pela construção do Estado para Israel sustenta essa relação até hoje. Sem esse intercâmbio, o relacionamento seria difícil de imaginar. Como mostram as cifras atuais do Instituto Internacional de Estudos para a Paz de Estocolmo (SIPRI), os Estados Unidos são atualmente responsáveis por 69% das importações de armas em Israel, enquanto a República Federal da Alemanha contribui com 30%. Os números não poderiam ser mais claros. Os Estados Unidos e a Alemanha são os aliados mais importantes de Israel e, portanto, são corresponsáveis por tudo o que acontece em Gaza, mas também na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental.

A moralização da razão de Estado

A relação de troca que acabamos de mencionar caracteriza as relações até hoje, mas também passou por transformações. Enquanto no tempo de Adenauer a relação com Israel continuava sendo funcional – um certificado de integração ao Ocidente, um álibi utilizado para não ter que continuar com o precocemente fracassado projeto de desnazificação –, hoje a relação com Israel é moralizada pelo lado alemão. A ideia básica de Adenauer de que a solidariedade com Israel criava exculpação se fortaleceu. Mais do que isso: pode ser entendida como uma forma estatal de política de identidade, isto é, como nacionalismo. A equação expressada é: quanto mais estreita for a relação com Israel, maior será a distância em relação ao passado. Isto tem a ver apenas parcialmente com a luta contra o antissemitismo e as tendências fascistas.

Vejamos alguns exemplos disso. Em 2018, o Bundestag celebrou o 70º aniversário da fundação do Estado de Israel. Não se discutiu o lado negativo dessa fundação do Estado: a catástrofe dos refugiados palestinos. Pelo contrário, os cumprimentos de aniversário tornaram-se uma celebração da política alemã em relação a Israel. Katrin Göring-Eckardt, do Partido Verde, foi quem resumiu melhor a autoimagem que surgia no debate quando disse: «O direito de Israel de existir é o nosso».
Cinco anos depois, em 2023, o Bundestag celebrou, em mais um momento especial, o 75º aniversário da fundação do Estado de Israel. Friedrich Merz, líder da União Democrata Cristã (CDU), o maior partido da oposição, começou seu discurso citando Theodor Herzl, que disse uma vez que um Estado judeu «não tem por que ser um conto de fadas». Segundo Merz, no início isto era apenas um desejo, «porque ainda seria um longo caminho até a formação do Estado, um caminho através do inferno. Naquele momento, o povo judeu ainda não tinha vivido os pogroms da primeira metade do século XX e o Holocausto cometido pela Alemanha».

Merz não explicita, mas a mensagem pode ser lida nas entrelinhas: que o próprio Estado era a recompensa por ter percorrido o «caminho através do inferno». Será que o Holocausto adquire posteriormente significado para Merz porque, nesta leitura tão sugestiva, abriu o caminho para a fundação do Estado de Israel? Se assim for, não seria isso uma banalização dos crimes sem precedentes da Alemanha? O que Merz expressa aqui é uma visão que certamente prevalece no aparato estatal alemão: a de que Israel e, portanto, as relações germano-israelenses são uma espécie de «final feliz» do Holocausto. Uma violenta estratégia de exculpação. Após o terror de 7 de outubro de 2023, a ministra das Relações Exteriores alemã, Annalena Baerbock, disse logicamente: «Somos todos israelenses». O desejo dos descendentes dos perpetradores de se identificarem com os descendentes das vítimas pode ser psicologicamente compreensível. Não contribui para uma melhor reconciliação com o passado ou para uma melhor política exterior.

Humanidade compartilhada

O nacionalismo – quer surja do próprio Estado ou de outro Estado – dificulta a defesa universal dos direitos humanos. Isto é também o que acontece com a política alemã para o Oriente Médio. Neste caso, porém, o padrão duplo parece particularmente evidente, já que se afirma defender uma política exterior «baseada em valores» e «feminista» e que está empenhada em manter a «ordem mundial baseada em regras».
Se este for o caso, então estes valores, este feminismo, estas regras claramente não se aplicam aos sobreviventes da guerra em Gaza, que, tendo fugido das suas casas, enfrentam as proverbiais ruínas da sua existência. A acusação de padrão duplo, há muito levantada pelo «Sul global» contra o Ocidente, surge mais uma vez pelo conflito entre israelenses e palestinos. O problema global da «linha de cor» que W.E.B. Du Bois diagnosticou para o século passado também persiste neste.

Tradução: Eduardo Szklarz


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