Brasil na Presidência do G-20: transversalidade temática e abertura para participação social
Nueva Sociedad Novembro - Dezembro 2024
Caracterizado por sua informalidade e capacidade adaptativa, o G-20 foi fundado em 1999 como resposta à necessidade de um fórum mais inclusivo para discutir questões econômicas e financeiras globais. Desde a crise de 2008, tornou-se o principal fórum para a coordenação da política econômica internacional. O Brasil assumiu a Presidência do grupo no final de 2023, buscando promover uma «nova globalização que combata as disparidades» com foco em três eixos: inclusão social, desenvolvimento sustentável e reforma das instituições de governança global.

O G-20 ocupa hoje um papel proeminente no multilateralismo. Com os impasses nas principais instituições internacionais, os Estados estão encontrando mecanismos alternativos para buscar formas de enfrentar os problemas globais. Caracterizado pela sua informalidade e capacidade adaptativa, o G-20 é um fórum internacional composto por 19 países, pela União Europeia e pela União Africana. Além dos países do g-7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido), o grupo inclui África do Sul, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, China, Índia, Indonésia, México, República da Coreia, Rússia e Turquia, e a União Europeia e a União Africana. A entrada desta última, que reúne 55 países da África, como membro permanente do G-20 foi confirmada em 2023, na Cúpula de Nova Délhi, na Índia. Os membros do grupo dos 20 representam em conjunto cerca de 85% do pib, mais de 75% do comércio e praticamente dois terços da população mundiais. O G-20 foi formado em 1999, como um espaço que reuniria as mais importantes economias industrializadas e em desenvolvimento, em resposta à necessidade de um fórum mais inclusivo para discutir questões econômicas e financeiras globais. A elevação à Cúpula de Líderes em 2008 deu força à importância de incluir as economias emergentes nos esforços para enfrentar a crise financeira global de 2008 e suas consequências econômicas. Desde então, o G-20 se tornou o principal fórum para a coordenação da política econômica internacional.
Inicialmente caracterizado como «comitê de crises», o G-20 vem evoluindo ao longo dos anos, e sua transição aponta para uma importante contribuição do processo de cúpulas para a arquitetura da governança global1. Tem sido capaz de influenciar a agenda internacional e mesmo moldar a governança global a partir de deliberações do grupo e do empenho posterior de seus membros em transformar as recomendações em ações efetivas2. Nesse contexto, a bibliografia tem se dedicado à discussão do papel do G-20 e sua natureza informal; de questões sobre legitimidade, eficácia e accountability do grupo; da sua relação com o sistema das Nações Unidas, organizações internacionais, e demais grupos, como o g-7 e o brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul); bem como da expansão da sua agenda e dos grupos de engajamento, incorporando temas prementes da agenda internacionais e novos atores ao seu processo3. Mesmo reconhecendo os limites que se impõem quando é debatido o papel de regimes e organismos internacionais face à recorrente disputa entre Estados-nações4, é importante compreender a dinâmica e o arranjo institucional do G-20 para situar melhor o seu papel na governança global contemporânea. Não se pode reduzi-lo somente à Cúpula de Líderes5. É preciso olhar para dentro da floresta para entender as potencialidades e limites deste fórum. Apresentamos aqui uma descrição da estrutura institucional e da história do G-20, bem como a contextualização da Presidência brasileira em 2024 e seus possíveis legados, em particular a aproximação entre os trabalhos da Trilha de Sherpas e da Trilha de Finanças, e a inovação da participação social no G-20.
Estrutura e natureza do G-20
O G-20 é estruturado como um fórum de cooperação internacional que reúne os líderes das maiores economias do mundo. Trata-se de uma entidade informal, que não tem sua base em um documento constitucional e tampouco conta com declarações com conteúdo juridicamente vinculante e passível de enforcement. Sem competências e regras de funcionamento rígidas, em comparação às organizações internacionais, o grupo apresenta certa agilidade e capacidade de improvisação, e cumpre «um papel central no esforço de manter abertos os canais de diálogo entre os países»6. Em um ambiente onde os líderes se encontram com regularidade, a familiaridade e a informalidade podem facilitar a construção de consensos e a tomada de decisões7.
Não existem critérios formais para a adesão ao G-20. A adesão deveria refletir o equilíbrio regional e garantir que o grupo se mantivesse suficientemente pequeno para permitir uma discussão aberta e direta8. Sua Presidência é rotativa entre os membros permanentes, sendo que cada país que hospeda a Cúpula do G-20 também lidera os trabalhos dos inúmeros grupos de trabalho, forças tarefas e iniciativas durante o seu mandato, em um ciclo de um ano. Não há a figura de um Secretariado permanente, embora o país que assuma a Presidência muitas vezes estabeleça um grupo diretivo temporário para coordenar os preparativos da reunião de líderes e facilitar a comunicação entre os membros. Nesse cenário, em 2002, o G-20 estabeleceu uma estrutura de gestão chamada «troika», com a Presidência anterior, a atual e a imediatamente futura. Enquanto o país que ocupa a Presidência do G-20 é responsável por coordenar a agenda do grupo em contato permanente com os outros membros, os demais países da troika prestam apoio para garantir a continuidade das políticas e agendas. Esse arranjo busca garantir à atual e à futura presidências acesso imediato à experiência do presidente do ano anterior.
Na estrutura atual do grupo, a sua principal reunião ocorre anualmente e é chamada de Cúpula do G-20, quando os chefes de Governo e Estado dos países participantes se encontram para discutir questões econômicas e financeiras globais, bem como outras questões relevantes para a cooperação internacional. Além das reuniões de líderes, os ministros de Finanças e os presidentes dos Bancos Centrais dos membros também se encontram regularmente, em média quatro vezes ao longo do ano, em reuniões no país anfitrião e junto às Reuniões de Primavera do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (fmi), em Washington, discutindo igualmente temas econômicos e financeiros globais, e ajudando a preparar a agenda para a cúpula anual. Antes dos encontros ministeriais e de líderes, os vice-ministros e as equipes técnicas preparam e negociam documentos, relatórios, notas técnicas e declarações temáticas.
Assim, longe de se resumir à Cúpula de Líderes no final da Presidência de cada país, o G-20 depende de um processo consolidado, a partir dos temas da agenda da Presidência e do legado dos grupos de trabalho, que impulsiona as discussões durante o ano e conduz aos communiqués dos líderes. Nessa dinâmica, as relações de alto nível entre chefes de Estado e de Governo se combinam com um fluxo constante de discussões de nível mais técnico entre diferentes ministros e ministras, e suas equipes técnicas. Antes de ser promovida ao nível de líderes em 2008, a reunião inaugural de ministros de Finanças e de presidentes dos Bancos Centrais se deu em nível ministerial, de 15 a 16 de dezembro de 1999, em Berlim. Tal fórum foi criado por recomendação dos ministros da Fazenda do g-7 no seu relatório da Cúpula do g-8 de Colônia, de junho de 1999, sobre o reforço da arquitetura financeira internacional e em resposta à crise financeira asiática e latino-americana de 1997 e 1998. Naquele momento, reconhecia-se a necessidade da inclusão dos países emergentes mais importantes como parceiros na governança econômica global9. O encontro de Berlim estabeleceu um compromisso dos membros do G-20 em torno do cumprimento de códigos e padrões internacionalmente aceitos, definidos pelo fmi, Banco Mundial e outras organizações relevantes, que visavam fortalecer os sistemas financeiros nacionais. De acordo com John Kirton10, as reuniões do G-20 em nível ministerial e de cúpula poderiam ser divididas em fases distintas. A primeira, entre dezembro de 1999 e outubro de 2008, de reuniões dos ministros de Finanças e de presidentes dos Bancos Centrais do G-20, que, como visto, depois continuaram em paralelo às Cúpulas de Líderes. Essa primeira década dos anos 2000, em que as reuniões do G-20 aconteceram em nível ministerial, foi fundamental para entrelaçar a Trilha de Finanças à estrutura do G-2011. A segunda, entre novembro de 2008 e outubro de 2009, com o início das Cúpulas de Líderes. A terceira, entre setembro de 2009 e outubro de 2010, com um novo enquadramento para a relação G-8/G-20 a partir da Cúpula de Pittsburgh, quando os líderes declararam que o G-20 seria o principal fórum para a cooperação econômica internacional. A quarta, entre novembro de 2010 e março de 2014, com a inclusão na Cúpula de Seul do tema «desenvolvimento» na agenda, marcando o início da expansão do foco até então estritamente econômico e financeiro do G-20. A quinta, de março de 2014 até o presente, quando, com a suspensão da Rússia como membro do g-8, este último reverteu para o G-7, alterando a dinâmica da relação G-7/G-20. Com a elevação ao nível de cúpula em 2008, o G-20 tornou-se um processo de duas vias, com uma Trilha de Sherpas estabelecida ao lado da Trilha de Finanças. Coordenada pelas chancelarias dos membros e composta por diferentes ministérios a depender do tema de cada grupo de trabalho, a via Sherpas lida com questões não cobertas pela via financeira. Os sherpas supervisionam as negociações, discutem os pontos que formam a agenda da Cúpula e coordenam a maior parte do trabalho do encontro de líderes. Já a Trilha de Finanças trata de assuntos macroeconômicos estratégicos e é comandada pelos ministros de Finanças e presidentes dos Bancos Centrais dos países do G-20. Esta tem sido fundamental na orquestração de acordos sobre uma gama de medidas regulatórias e de coordenação de políticas macroeconômicas que foram posteriormente adotadas por órgãos como o Comitê de Basileia ou mesmo a ue, e que, eventualmente, tomaram a forma de leis nacionais12. Ao longo dos anos, a economia global e a regulação financeira permaneceram como as principais agendas da Trilha de Finanças. No entanto, cada Presidência acrescentou novas ideias em torno de temas como finanças internacionais, despesas em infraestruturas, financiamento climático, agendas fiscais, entre outros. Segundo pesquisa de Saon Ray et al.13, até 2023, as quatro agendas centrais que foram discutidas 14 vezes incluem: (a) a economia global, as políticas fiscais e monetárias; (b) as instituições financeiras internacionais; (c) a reforma e regulamentação do setor financeiro; e (d) tributação internacional. Outros temas foram discutidos de oito a treze vezes e incluem: (a) investimentos e gastos em infraestrutura; (b) flexibilidade cambial; (c) mudanças climáticas; (d) reformas estruturais; (e) inclusão financeira; (f) redução dos desequilíbrios; e (g) redes de segurança financeira globais.
Para tratar das questões específicas a cada área, o G-20 conta nas duas trilhas com diferentes grupos de trabalho. Formados por representantes dos governos dos países membros, bem como dos países e organizações internacionais convidados, os grupos de trabalho temáticos se reúnem regularmente e fornecem análises, recomendações e propostas que podem ser consideradas pelos líderes do G-20. A Trilha de Sherpas é composta atualmente por 15 grupos de trabalho (Agricultura, Anticorrupção, Comércio e Investimentos, Cultura, Desenvolvimento, Economia Digital, Educação, Empoderamento de Mulheres, Pesquisa e Inovação, Sustentabilidade Ambiental e Climática, Trabalho, Transições Energéticas, Redução de Riscos de Desastres, Turismo e Saúde), duas forças-tarefa (Mobilização Global contra a Mudança do Clima e Aliança Global contra a Fome e a Pobreza) e uma Iniciativa (Bioeconomia). Já a Trilha de Finanças conta com sete grupos técnicos (Assuntos do Setor Financeiro, Arquitetura Financeira Internacional, Economia Global, Finanças Sustentáveis, Inclusão Financeira, Infraestrutura e Tributação Internacional), além de uma força-tarefa (Força-tarefa Conjunta de Finanças e Saúde)14. Há fortes elementos de continuidade entre os grupos de trabalho no processo de alternância das presidências. Primeiro, em conjunto com a Presidência, na Trilha de Finanças, os papéis de copresidentes de cada grupo são muito definidores na construção das prioridades. Muda-se a Presidência e a Troika, mas os copresidentes permanecem, oferecendo suporte técnico e apoio político à nova presidência, mas também, a depender do contexto do grupo, exercendo um potencial controle sobre a agenda. Segundo, é muito difícil eliminar um grupo de trabalho criado anteriormente. Ganha-se espaço para inovar institucionalmente, mas as presidências precisam dar seguimento ao legado dos grupos, com uma carga de trabalho já em andamento que não se consegue mudar completamente15. Além da agenda de prioridades definida ano a ano, diversos grupos de trabalho contam com roteiros e planos de trabalho que se estendem ao longo de diferentes presidências.
Novos atores entram em cena
Pensando na natureza do G-20, Andrew Cooper16 aponta diferentes fases de transformação do grupo que o teriam desviado da sua função de concertação desempenhada durante os períodos iniciais de gestão de crises entre 2008 e 2010, com uma forma altamente restritiva, centrada no Estado, nas cúpulas de Washington, Londres e Pittsburg. Segundo o autor, em seguida, entre 2010 e 2013, o G-20 teria caminhado para um modo plurilateral de governança, com a inclusão, ainda que controlada, tanto de novas áreas temáticas quanto de tipos de atores a serem envolvidos no processo. Por fim, a partir de 2014, o grupo teria se consolidado como um centro híbrido e ponto focal orientado para formação de redes.
A expansão da agenda política do G-20 desde 2010 foi simultaneamente uma consequência e uma causa da descentralização da autoridade, uma vez que questões políticas mais amplas envolveram mais atores, ao mesmo tempo em que a diversificação das partes interessadas do grupo alargou ainda mais a agenda17. A expansão horizontal e vertical do G-20 colocou em jogo uma série de atores, incluindo representantes de organizações internacionais, convidados especiais, grupos de trabalho, reuniões ministeriais e grupos de partes interessadas18. Todavia, ainda que o papel dos Estados no G-20 já não seja mais exclusivo, as perspectivas e identidades específicas de cada país continuam a ser fundamentais, sobretudo nas comunicações e decisões de líderes e de ministros. A centralidade do Estado é um aspecto inerente ao G-20. São majoritariamente os membros e a Presidência que moldam a agenda e os resultados. Por exemplo, os processos de negociação dos communiqués baseiam-se sobretudo em posições específicas de cada país, em um exercício de compromisso entre os pontos de vista dos membros nos encontros de alto nível de representação política19.
Por outro lado, a relação do G-20 com as organizações internacionais passou de uma desconfiança inicial de que este pudesse minar o trabalho do sistema das Nações Unidas, em uma dinâmica de concorrência, a uma relação que se reforça mutuamente. Representantes das principais instituições internacionais, de natureza universal e regional, foram convidados para a Cúpula do G-20 desde seu início, assumem assentos nas reuniões ministeriais e são convidados nos grupos de trabalho das duas trilhas. Diferentes organizações internacionais são encarregadas a cada nova Presidência do G-20 de preparar estudos técnicos para as suas reuniões, ao mesmo tempo que também contribuem muito para a implementação do consenso entre os países do grupo20.
O G-20 fez avanços substanciais no trabalho em rede por meio de diálogos estruturados com determinadas organizações da sociedade civil21. Passaram a existir os grupos de engajamento, que reúnem diferentes segmentos da sociedade civil hoje representados no c-20 (sociedade civil), no t-20 (think tanks), no y-20 (juventude), no w-20 (mulheres), no l-20 (trabalho), no u-20 (cidades), no b-20 (business), no s-20 (ciências), no Startup20 (startups), no p-20 (parlamentos), no sai-20 (tribunais de contas) e, nos mais novos, j-20 (cortes supremas) e o-20 (oceanos).
As prioridades da Presidência brasileira: temas e inovações institucionais
Ao definir a agenda e as prioridades da Presidência e da Cúpula, nenhum país anfitrião começa com uma tábula rasa. É esperado que as novas presidências levem adiante a agenda e os compromissos anteriores, em especial aqueles que não possam ser implementados integralmente em um único ano. No entanto, para cada nova Presidência do G-20 existe uma medida de autoridade discricionária para interpretar e reinterpretar os resultados anteriores, do mesmo modo como se coloca também a liberdade para decidir onde, como e as razões para adicionar novos itens22. Os países buscam se valer do G-20 para apresentar suas perspectivas sobre os principais temas da agenda global, dialogando com os seus interesses estratégicos domésticos.
O Brasil assumiu a Presidência rotativa do G-20 pelo período de um ano a partir do início de dezembro de 2023, ocupando a posição depois da Presidência da Índia durante 2023. É a primeira vez que o país cumpre o papel nesse formato. Havia presidido o G-20 em 2008, porém em um momento no qual o evento ainda se dava no nível ministerial. O Estado brasileiro detém a responsabilidade de organizar as reuniões técnicas e as conferências ministeriais que culminarão na 19a Cúpula do G-20, em novembro de 2024, no Rio de Janeiro. No total, serão mais de 130 reuniões e eventos durante o mandato brasileiro, em 15 diferentes cidades brasileiras.
Nesse papel, o país pôde alinhar os trabalhos do G-20 em torno de temas historicamente vinculados às prioridades da política externa brasileira. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva apresentou a busca de uma «nova globalização que combata as disparidades» como objetivo central que guiará toda a Presidência brasileira, estruturada em torno de três eixos: a inclusão social e o combate à fome e à pobreza; a promoção do desenvolvimento sustentável em suas dimensões social, econômica e ambiental, e as transições energéticas; e a reforma das instituições de governança global23. Para reforçar as três prioridades estabelecidas em torno da pobreza, do clima e da governança, o país também incluiu dois objetivos institucionais para a sua Presidência: «a maior articulação entre as trilhas de Sherpas e de Finanças e o fortalecimento da participação da sociedade civil nos debates do grupo»24. Já em dezembro de 2023, entre os encontros da Trilha de Sherpas nos dias 11 e 12, e da Trilha de Finanças nos dias 14 e 15, o Brasil inovou ao realizar uma reunião conjunta das duas trilhas no dia 13 a partir de elementos transversais entre suas agendas. O encontro entre as trilhas que acontecia somente na Cúpula de Líderes foi antecipado de forma inédita pela Presidência brasileira.
A partir das prioridades escolhidas, no primeiro eixo, a Presidência brasileira propôs a criação de uma Força-Tarefa para Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, com a proposição de uma aliança com «um pilar de compromissos nacionais, que impulsionará um conjunto de políticas públicas de efetividade já testada; um pilar financeiro, que mobilizará recursos internos e externos para o financiamento dessas políticas; e um pilar de apoio técnico, que difundirá boas práticas e incentivará a cooperação Sul-Sul»25. Com o segundo eixo, o objetivo é garantir que as transformações da sociedade, com a descarbonização da economia global e a revolução digital, resultem em bem-estar social, prosperidade econômica e sustentabilidade ambiental para todos. Para tanto, foi proposta a criação de uma Força-Tarefa para a Mobilização contra a Mudança do Clima, com o foco na «promoção de planos nacionais de transformação ecológica, que levem em conta o impacto do aquecimento global sobre os mais vulneráveis»26. A estruturação da agenda do G-20 considera também os planos para a cop30, a ser realizada em 2025, em Belém, e a intenção de que os países adotem nessa oportunidade contribuições nacionalmente determinadas (ndc, na sigla em inglês) mais ambiciosas, acompanhadas dos meios de implementação adequados. Na perspectiva do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a criação das duas forças-tarefas, para o combate à fome e para o combate à mudança climática, representa «um apelo a um G-20 unido e ao alinhamento de recursos no nível de ambição esperado pelos nossos líderes» e uma «chance de reconectar o Sul e o Norte globais em torno de uma agenda positiva de transformação social, econômica e ecológica»27.
Por fim, no terceiro eixo, a Presidência brasileira procurará enfrentar com seriedade o debate sobre o anacronismo das instituições de governança global e sua baixa representatividade. No que diz respeito à sociedade civil, o presidente Lula anunciou o G-20 Social na 18a Cúpula do G-20, em Nova Délhi, momento em que o Brasil assumiu simbolicamente a Presidência do bloco. O objetivo do G-20 Social é ampliar a participação de atores não-governamentais nas atividades e nos processos decisórios do G-20. Além das atividades desenvolvidas pelos grupos de engajamento, o G-20 Social tem procurado desenvolver iniciativas e eventos com vistas à coordenação de diálogos entre os grupos de engajamento, e à expansão da base social em torno do grupo, com a aproximação de movimentos populares, organizações não-governamentais e redes internacionais28.
Para colocar em marcha o G-20 Social na Trilha de Finanças, foi estruturada uma equipe técnica no Ministério da Fazenda e definida uma estratégia de realizar encontros e debates em torno das prioridades brasileiras de forma a estabelecer um canal de diálogo entre os negociadores brasileiros e a sociedade civil global. Com o objetivo de possibilitar maior engajamento e participação social, as propostas de atividades contam com metodologias que procuram garantir transparência e, ao mesmo, espaço de escuta e abertura a contribuições da sociedade civil. Os temas tratados encontram correspondência com as questões centrais da Presidência brasileira: desigualdades, tributação internacional, transição justa, dívida e reforma da governança global29.
Tanto a Trilha de Sherpas quanto a Trilha de Finanças organizaram sessões nas reuniões dos vice-ministros para que os grupos de engajamento entregassem as propostas elaboradas ao longo do primeiro semestre pelos seus grupos de trabalhos e forças-tarefas. As sessões foram realizadas em julho de 2024, de modo a garantir tempo suficiente para que os estudos possam ser potencialmente considerados no contexto das negociações em torno das declarações finais, em novembro. Organizados pela primeira vez nesse formato, os encontros procuraram oferecer um espaço efetivo de diálogo e incidência dos grupos de engajamento ao equalizar seu calendário de entregas à agenda das trilhas do G-20. Até então, os documentos resultantes das atividades de alguns dos grupos de engajamento costumavam ser apresentados ao final de cada presidência, no contexto da Cúpula de Líderes. Por fim, a Secretaria Geral da Presidência criou um Comitê organizador paritário com seis membros dos governos (dois da Secretaria Geral da Presidência – Secretário Nacional de Participação Social, e Chefe da Assessoria Internacionais da Presidência; Ministério da Fazenda, Ministério das Relações Exteriores; Ministério da Cultura; e a Secretaria de Comunicação Social) e cinco movimentos populares e uma central sindical da base de apoio do governo (Central Única dos Trabalhadores, cut; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, mst; Associação dos Povos indígenas do Brasil, api; Coalizão Negra por Direitos; e Marcha Mundial das Mulheres, mmm) para a construção da Cúpula Social em novembro. O objetivo é construir um grande encontro da sociedade civil global no Rio de Janeiro, quatro dias antes do início da Cúpula dos Líderes. Durante os dias 14 e 16 de novembro, o Rio de Janeiro receberá milhares de cidadãos e cidadãs do mundo que poderão realizar atividades autogestionadas, participar de feiras solidárias, debates e plenárias em torno das prioridades da Presidência brasileira do G-20.
O G-20 como um fórum transversal e com participação social?
Em face do protagonismo que o G-20 assumiu e considerando sua natureza informal e flexível, não há surpresas na extensão dos debates sobre o efetivo papel do grupo na governança global e sua falta de accountability, a começar pelo seu número limitado de membros e pela ausência de processos regulares de análise dos documentos e declarações de presidências anteriores. De um lado, sob uma perspectiva crítica em relação as suas deliberações, o grupo teria se mantido como um produto da atual ordem econômica internacional, um instrumento para promover um amplo debate sobre a interação entre os mercados globais e os Estados-nações, e colocar em prática políticas neoliberais30. Voltando à vocação original do grupo, alguns analistas afirmam que o G-20 teria falhado em reformar de fato as instituições financeiras multilaterais e se tornado apenas uma plataforma para grandes declarações, com pouco impacto sobre a realidade31. Para outros, no que apontam para «um nível grande de ineficiência», as razões estariam no grau de formalização do grupo e no aumento do nível de foros32, bem como na expansão da agenda e nas dificuldades para controlá-la33. Cada vez mais, os próprios membros do G-20 têm se referido à significativa expansão dos mandatos dos grupos de trabalho, com sobreposições de temas e complexificação do processo de tomada de decisões em torno da busca pelo consenso nas negociações.
Não obstante, o G-20 se tornou um espaço central de diálogo que permite justamente a ampliação das áreas e do alcance do seu consenso34. Dentro de suas características atuais, o grupo, direta ou indiretamente, consegue informar e envolver ativamente a sua governança ao atravessar de forma transversal diversas arquiteturas de governança global ao mesmo tempo35. As várias «iterações do sistema g» apareceram como respostas, sob a forma de estruturas alternativas de governança global informal, às principais crises da economia global e um reconhecimento de que os modos existentes de governança global demandavam maior coordenação36. O G-20 encontra a sua força na capacidade que demonstra em produzir amplas mensagens políticas que podem dirigir a prática política dos Estados, das organizações internacionais e de setores da sociedade civil global. Nessa perspectiva, a Presidência brasileira, em especial na Trilha de Finanças, tem procurado estabelecer algumas inovações como legado para o grupo. Primeiro, a agenda da Presidência colocou o endereçamento do combate às desigualdades como centro das políticas macroeconômicas, com a busca da garantia de criação de espaço fiscal; pautou a proposta de tributação das grandes fortunas, com a aprovação da Declaração Ministerial do G-20 sobre Cooperação Tributária Internacional na terceira Reunião Ministros de Finanças e de Presidentes dos Bancos Centrais do G-20, em julho; e consolidou a questão climática como um tema transversal ao grupo37. Institucionalmente, a realização das forças-tarefas que reúnem as duas trilhas denota o reconhecimento da transversalidade dos temas e da importância da atuação coordenada entre a Trilha de Finanças e a Trilha de Sherpas, e sinaliza para as próximas presidências a necessidade de debates e propostas interligadas pelas questões econômicas, ambientais, políticas e sociais. Por fim, se mantida, a participação social como elemento prioritário poderá induzir a maior transparência e pluralidade, dando seguimento a iniciativas como a Cúpula Social, as sessões de entrega dos documentos e propostas da sociedade civil para os Sherpas e vice-ministros das duas trilhas, e a estruturação de equipes específicas na Presidência que atuem como canais de comunicação entre os grupos de engajamento e outros atores sociais.
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1.
Andrew F. Cooper: «The g20 Is Dead as a Crisis or Steering Committee: Long Live the g20 as Hybrid Focal Point» em South African Journal of International Affairs vol. 26 No 4, 2019.
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2.
Mauricio Carvalho Lyrio e Kassius Diniz da Silva Pontes: O g20, funag, Brasília, 2024.
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3.
Hugo Dobson: Unpacking the g20: Insights from the Summit, Edward Elgar, Cheltenham, 2024.
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4.
John J. Mearsheimer: «The False Promise of International Institutions» em International Security vol. 19 No 3, 1994-1995.
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5.
Bertrand Badie: «La diplomatie des sommets a démonstré lárchaisme du souverainisme» em Le Monde France, 23/4/2009.
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6.
M.C. Lyrio e K.D. da Silva Pontes: ob. cit., pp. 12-41.
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7.
Paola Subacchi: «Evaluating the g-20 at 20 Years» em South African Journal of International Affairs vol. 26 No 4, 2019.
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8.
Peter I. Hajnal:The g20: Evolution, Interrelationships, Documentation, 2a ed., Routledge, Londres-Nova York, 2019.
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9.
P.I. Hajnal: ob. cit.
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10.
J.J. Kirton: China’s g20 Leadership, Routledge, Londres-Nova York, 2016.
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11.
S. Ray, Samridhi Jain, Vasundhara Thakur e Smita Miglani: Global Cooperation and g-20: Role of Finance Track, Singapore, Springer, 2023.
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12.
Ibid.
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13.
Ibid.
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14.
V. «Trilhas de Sherpas e de Finanças: saiba como os temas do g20 são debatidos» em www.g20.org/pt-br/trilhas.
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15.
«O Brasil no g20 | Entrevista - Embaixador Carlos Márcio Cozendey», Fundação Alexandre de Gusmão em YouTube, 20/2/2024, disponível em https://youtu.be/laal3ewaywy?si=1nz94hpj9o3d3ls7.
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16.
A.F. Cooper: ob. cit., p. 507.
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17.
Jonathan Luckhurst: «Governance Networks Shaping the g-20 through Inclusivity Practices» em South African Journal of International Affairs vol. 26 No 4, 2019.
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18.
H. Dobson: ob. cit.
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19.
Ibid.
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20.
Jiejin Zhu: «g20 Institutional Transition and Global Tax Governance» em The Pacific Review vol. 29 No 3, 2016.
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21.
A. Cooper: ob. cit., p. 507.
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22.
Gregory T. Chin e H. Dobson: «China’s Presidency of the g20 Hangzhou: On Global Leadership and Strategy» em Global Summitry vol. 1 No 2, 2015.
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23.
«‘Precisamos de uma nova globalização que combata as disparidades’, defende Lula» em g20 Brasil 2024, 13/12/2023, disponível em www.g20.org/.
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24.
M.C. Lyrio e K.D. da Silva Ponte: ob. cit.
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25.
«‘Precisamos de uma nova globalização que combata as disparidades’, defende Lula», cit.
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26.
Ibid.
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27.
«‘Queremos melhorar fluxos financeiros para países que mais necessitam’, defende Haddad» em g20 Brasil 2024, 14/12/2023, disponível em www.g20.org/.
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28.
V. « g20 Social» em g20 Brasil 2024, disponível em www.g20.org/.
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29.
Os documentos e vídeos das atividades podem ser encontrados no site do g-20, www.g20.org/pt-br/g20-social/g20-social-na-trilha-de-financas.
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30.
P. Subacchi: ob. cit.
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31.
M.C. Lyrio e K.D. da Silva Pontes: ob. cit.
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32.
«Curso - O Brasil no g20 | Entrevista - Embaixador Marcos Caramuru», Fundação Alexandre de Gusmão em YouTube, 20/2/2024, disponível em https://youtu.be/uzhpivddoua?si=z1kcfqsvyogfgj8u.
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33.
«Curso - O Brasil no g20 | Entrevista - Embaixador Ronaldo Costa Filho», Fundação Alexandre de Gusmão em YouTube, 20/2/2024, disponível em https://youtu.be/gt1piyte7tw?si=pbsgc-yuxv4ok5ba.
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34.
M.C. Lyrio e K.D. da Silva Pontes: ob. cit.
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35.
A.F. Cooper: ob. cit.
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36.
Steven Slaughter: «Global Informalism and the g20» em Journal of International Relations and Development vol. 24, 2020.
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37.
«The Rio de Janeiro g20 Ministerial Declaration on International Tax Cooperation», 26/7/2024, e «Third g20 Finance Ministers and Central Bank Governors Meeting (fmcbg) Communiqué», 26/7/2024, ambas disponíveis em www.gov.br/.