Tema central
NUSO Nº 2019 / Dezembro 2019

Portugal: uma social-democracia com futuro?

A esquerda portuguesa conseguiu estabelecer um acordo político que permitiu a formação de um governo socialista com o apoio do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda. Trata-se de uma experiência inovadora centrada no programa, não na distribuição de cargos (os aliados não integram o governo), que pôde reverter a crise e as políticas de austeridade, implementando um projeto econômico heterodoxo.

Portugal: uma social-democracia com futuro?

Gênese e balanço da experiência governativa de esquerda em Portugal

A atual experiência de governo em Portugal saída das eleições legislativas de outubro 2015 resulta de um entendimento entre três forças políticas de esquerda – o Partido Socialista (ps), o Partido Comunista Português (pcp, inclui os Verdes numa aliança eleitoral) e o Bloco de Esquerda1 – que apoiaram um governo minoritário liderado pelos socialistas2.

O apoio parlamentar de dois partidos situados no espectro mais radical da esquerda concretizou-se num acordo inicial com o ps que visou implementar um conjunto de políticas sociais e econômicas de restituição de direitos e de recuperação de rendimentos. Ao longo do período de austeridade, o país foi alvo de um pesado programa de ajuste imposto pela designada troika – constituída pela Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional (fmi) e o Banco Central Europeu (bce) –, perante a qual parte significativa dos portugueses sofreu uma redução expressiva do seu rendimento disponível resultante dos cortes nos salários, nas pensões e nas políticas sociais.

Como demonstraram estudos recentes3, foram precisamente os pobres e vulneráveis aqueles que mais sofreram com as políticas de austeridade, designadamente por via da alteração dos critérios de condição de recursos executada na maior parte das políticas e programas de apoio e de ação social. Este período foi marcado pelo aumento expressivo do desemprego, cuja taxa oficial rondou os 17% em 2013, e por um aprofundamento da desigualdade e dos níveis de pobreza monetária e de privação material. No entanto, certas análises científicas revelaram que o desemprego real poderia ter ultrapassado amplamente os 25% nesse ano4, o que significou no contexto da história contemporânea de Portugal uma enorme excepcionalidade com repercussões e impactos acrescidos no aumento dos fluxos emigratórios, que retomaram os níveis da década de 19605. Sublinhamos também duas outras áreas em que se verificou um forte retrocesso: a desregulação das leis laborais, que provocou um aumento geral da precariedade com particular incidência nas populações mais jovens; e a pressão sobre os sistemas públicos de provisão e de proteção, que implicou uma limitação e redução da qualidade dos serviços prestados, nomeadamente, no setor da saúde e da educação.

Perante estas tendências de retrocesso social, econômico e demográfico, a configuração governativa, batizada com o nome de «geringonça»6, pretendeu lançar um programa alternativo que no essencial pusesse um freio decisivo às dinâmicas regressivas. Correu por isso vários riscos iniciais que foi conseguindo superar, na medida em que esteve sujeita a uma tremenda pressão externa por parte das instituições da União Europeia, que olharam para esta solução governativa com enorme desconfiança e descrédito. No entanto, ao contrário do que muitos vaticinavam, a ascensão da esquerda ao poder não só não significou o colapso do país, como este se aproximou, cada vez mais, de uma situação econômico-financeira sustentável, afastando-se definitivamente da hipótese de um segundo resgate ou do regresso às políticas de austeridade. A revista The Economist chamou a experiência portuguesa de «um pequeno milagre no Atlântico»7.

O programa de recuperação de rendimentos e de valorização das pessoas, das empresas e das instituições públicas representou uma mudança decisiva face ao modelo anterior, levando algum tempo até dar os seus frutos. Todavia, passados dois anos de o governo ter entrado em funções, começou a se perceber que o país estava realmente melhorando. O poder aquisitivo foi sendo progressivamente recuperado, a taxa de desemprego diminuiu (baixando dos 10% pela primeira vez em oito anos), o déficit público decresceu para níveis que quase ninguém anteciparia nos meses iniciais (2% do pib), o crescimento ultrapassou os 2% e as exportações continuaram com um bom desempenho. Só a dívida externa se manteve neste período inicial em níveis insustentáveis. Ao fim de quase quatro anos de governo, estas tendências aprofundaram-se significativamente. A taxa de desemprego oficial ronda os 6,5% e o déficit caiu para níveis absurdamente baixos: chegou aos 0,5% do pib em 2018. A previsão é que em 2019 o país se aproxime do déficit zero. Por sua vez, a dívida externa iniciou uma trajetória decrescente e o nível de crescimento econômico diminuiria ligeiramente segundo a última previsão anual.

Não se trata de um governo de coalizão, mas de acordos programáticos específicos, sem que o Bloco de Esquerda nem o pcp ocupem cargos no governo. Os acordos que estiveram na base da construção da atual maioria consubstanciaram um processo efetivo de convergência política que, no essencial, foi cumprido por intermédio da aprovação de quatro orçamentos nacionais ao longo da presente legislatura, que está perto do fim. Por outro lado, o que aconteceu neste período revela algo que, apesar de agora ser relativamente óbvio, levou muito tempo para ser concretizado e implementado na democracia portuguesa: verificou-se que há mais pontos de encontro entre os programas dos vários partidos de esquerda que pontos de desencontro. Revelou, também, algo ainda mais determinante: os pontos de desencontro são importantes e necessários, pois revelam que em distintos temas existem diferentes alternativas, mas estes não têm inevitavelmente de se sobrepor aos pontos de convergência. Esta separação metodológica, que alicerçou o entendimento, foi outra das novidades do processo de negociação. Afinal, como ficou demonstrado pelos acordos iniciais e pela governação, a esquerda consegue ser pragmática sem com isso comprometer os princípios ideológicos de cada um dos partidos. Estes mantiveram a sua autonomia político-identitária, que se plasmou em posicionamentos divergentes sobre um amplo conjunto de matérias, que foram sendo propostas e aprovadas (ou recusadas) durante a legislatura. Arquitetou-se assim uma espécie de geometria variável que deu autonomia de posicionamento e de proposta aos vários partidos que apoiaram o governo, mas que nas questões nevrálgicas (como a aprovação dos orçamentos anuais) assegurou uma geometria invariável que convergiu por intermédio de intensos processos de negociação na defesa de políticas e objetivos comuns.

Depois de uma profunda crise, mesmo havendo muito a fazer em termos de coesão social e de combate às desigualdades, Portugal vive neste momento uma situação de estabilidade política e social que é verdadeiramente singular no contexto europeu, significando uma via possível que pode criar lastro em vários países da Europa e de outras geografias do mundo. Esta experiência prova que o caminho da social-democracia não está condenado. Pelo contrário: como se observou, esta pode se transformar num campo amplo capaz de potenciar pontes e de mobilizar ligações políticas entre várias forças em torno de uma agenda progressista. Contudo, nem tudo correu bem nestes últimos quatro anos.

Independentemente dos indicadores sociais e econômicos positivos (apesar de um certo arrefecimento da economia nos últimos meses), o governo não foi capaz de implementar políticas públicas que melhorassem significativamente a qualidade dos serviços públicos. A este respeito, verifica-se que o Serviço Nacional de Saúde continua sob forte pressão, tendo grande dificuldade em responder devidamente e de forma equitativa, em termos sociais e territoriais, às múltiplas e exigentes solicitações de parte da população. O mesmo se pode dizer das políticas laborais de combate à precariedade, em que, apesar de alguns programas de inserção e de vinculação de trabalhadores (por exemplo, no setor da administração pública), ficou-se muito aquém das expetativas geradas inicialmente. Na verdade, a precariedade continua a aumentar e atinge cada vez mais trabalhadores de diferentes gerações. Estas duas áreas são decisivas para o incremento da coesão social e da qualidade de vida no seio da sociedade portuguesa, devendo representar pilares fundamentais a serem consolidados num futuro governo que possa emergir no campo da esquerda. O âmago identitário da social-democracia passa necessariamente pelo desenvolvimento de políticas públicas nesses dois eixos, e nenhum deles pode estar ausente em uma agenda progressista que, simultaneamente, avance noutras áreas de intervenção política.

Transição para uma segunda legislatura: um programa social-democrata mais radical

Em outubro de 2019, Portugal realiza novas eleições legislativas. Apesar de o resultado eleitoral ser uma incógnita, há boas razões para acreditar e desejar que os partidos de esquerda podem voltar a se entender em torno de uma «geringonça 2.0». No entanto, os pressupostos a nortear esse novo entendimento deverão ir muito além do programa de restituição de rendimento e de melhoria dos serviços públicos. Assim, se o primeiro ciclo político conseguiu instalar sobretudo políticas de caráter redistributivo e de reversão da austeridade, o segundo ciclo deverá incorporar uma agenda emancipatória de investimento social e econômico atenta às premissas da sustentabilidade e aos problemas decorrentes das alterações climáticas, bem como um aprofundamento, crucial num contexto de crise das democracias, das dimensões de qualidade da experiência democrática que esta solução governativa pode proporcionar. A possibilidade de uma social-democracia mais radical assenta, em boa medida, na capacidade de conseguir uma evolução concertada do que ela mesma representa, a partir dessas duas âncoras que são o conteúdo programático socioeconômico e a experiência de maior capacitação democrática.

Ao fim do ciclo governativo 2015-2019, pode-se afirmar que a reversão do programa de austeridade imposto a Portugal durante o período 2011-2015 está praticamente completa. Houve quem pensasse, no começo, que isso significaria apenas uma reversão da disciplina orçamentária, que levaria a consequências dramáticas, desperdiçando todos os sacrifícios anteriores exigidos às populações. Novos sacrifícios, ainda mais violentos, teriam de ser impostos num horizonte próximo para evitar que o país se tornasse inviável. Nada mais errado. No período assinalado, a economia se revitalizou, foram alcançados déficits historicamente baixos, sendo defensável que para isso terá concorrido, de forma determinante, a recuperação da renda das famílias em virtude da reversão da austeridade. Mas também uma política mais robusta de redistribuição. A elevada carga fiscal, que suscitou protestos da direita, foi um fator que ajudou fortemente nesse sentido. Por outro lado, tanto o aumento sustentado do salário mínimo como a política de barateamento do transporte público nas zonas metropolitanas beneficiaram uma parcela muito significativa da população. Eram medidas que, em certo sentido, contrariavam a própria raiz da austeridade: amplificavam a esfera de ação do governo, ao invés de reduzi-la.

A política de confiança que permite avançar para estágios mais radicais de social-democracia passa precisamente por populações dispostas a pagar mais impostos, sob um princípio de progressividade razoável, tendo a certeza de que serão empregados no bem-estar social. Mas um programa de social-democracia mais radical não deve se restringir a políticas de distribuição de renda mais robustas, com coletas mais exigentes para provisões mais generosas. Deve ter também uma política de investimento, até agora francamente modesta, visando uma sociedade mais próspera. Contudo, o critério para uma política de investimento satisfatória não se resume a um quantitativo e a uma provisão, que terão forçosamente de crescer; inclui também uma escolha qualitativa de perspectiva sobre o tipo de investimento que deve ser promovido. Em vez de uma perspectiva dominantemente centrada na exploração de oportunidades de retorno, permanecendo neutra quanto aos seus impactos, importa uma perspectiva de investimento na sustentabilidade, com uma projeção de necessidades e de possibilidade econômicas a médio e longo prazos. Esta mudança de perspectiva, privilegiando a sustentabilidade duradoura à oportunidade momentânea, deve ser o critério na hora de elaborar, por exemplo, um plano energético nacional para a consolidação das fontes energéticas renováveis, mesmo que haja investimentos extrativistas com maior retorno imediato. O mesmo vale para a obtenção de condições efetivas de combate à desigualdade territorial, seja no que respeita à infraestrutura ou à criação de instrumentos de capacitação local para uma economia que busca ser cada vez mais autônoma. A mudança rumo a um paradigma de sustentabilidade não pode, contudo, dar as costas aos problemas sociais mais urgentes, que hoje atingem as populações. A pedagogia da sustentabilidade deve começar por desmontar o antagonismo entre a gravidade dos riscos do amanhã e a dos riscos de hoje. Levada às últimas consequências, uma política de sustentabilidade é ambiental, de recursos e ecológica, mas deve manifestar também uma significação social e econômica. Compreender a economia e a sociedade à luz de um paradigma de sustentabilidade consiste, muito especialmente, em agenciar políticas de criação de emprego e de proteção social que contrariem a permissividade para com o trabalho precário e a decorrente vulnerabilidade social. Empregos sustentáveis, assim como políticas de mobilidade e de habitação sustentáveis, devem ser definidos dentro de um conjunto de condições que impeçam o extrativismo nos domínios do trabalho, da habitação e de outras dimensões sociais, bem como no plano dos recursos naturais e dos equilíbrios ecológicos. Ou seja, é necessário enquadrar nos objetivos estratégicos mais amplos da sustentabilidade ambiental e ecológica um conjunto de políticas que visem uma redução urgente e efetiva das desigualdades socioeconômicas e territoriais. As políticas de justiça social devem se articular com políticas de justiça espacial e ambiental em várias escalas temporais e institucionais de atuação e governo.

Reforçar essas pressões a partir da preocupação em assegurar um horizonte programático amplo inclui, por sua vez, a necessidade de sinalizar e desarticular riscos associados ao exercício da política, à frente dos quais está o problema – que a esquerda deve combater sem demora – dos discursos e práticas contaminados por um enfoque tecnocrata, excessivamente ancorado na gestão da política diária e na formalização de propostas cada vez mais desgarradas de uma perspectiva sistêmica que projete o país para as próximas décadas. Por isso, um segundo ciclo de governação protagonizado pela esquerda deve apontar para um horizonte temporal que rompa decisivamente com a pequena política dominada pelo tempo imediato e quase instantâneo. A melhor forma de não ceder à tecnocracia é ter como horizonte da ação política um projeto delineado para o futuro do país e da sociedade.

O risco da «tecnocratização» da política8 advém também da adesão, quase acrítica, a esquemas rígidos que norteiam a política econômica e monetária da ue, assim como de outras organizações internacionais (fmi, Banco Mundial). A título de exemplo, defender teimosamente o déficit zero como objetivo primordial da política econômica representa não só a adesão a um dogma de cariz neoliberal, como poderá comprometer a prazo a hipótese de implementar uma verdadeira política estrutural baseada no investimento social e econômico. A este respeito, é importante que os partidos situados na centroesquerda (sociais-democratas e trabalhistas), reflitam sobre as consequências políticas e sociais de manter como requisitos da sua atuação pré-noções interpretativas importadas do campo da direita liberal. É importante barrar de vez essa colonização perversa de ideias, que tende perigosamente a padronizar e a uniformizar o discurso e a prática política. A social-democracia tem de ser capaz de construir um programa de ação política e uma narrativa que concorram aberta e frontalmente com a retórica da inevitabilidade da economia de mercado e das suas leis supostamente intrínsecas e inquestionáveis9.

Uma social-democracia avançada

Como referimos, o primeiro ciclo governativo sob a alçada da «geringonça» pautou-se pela reversão da austeridade. Já o novo ciclo, apostado na implementação de uma social-democracia avançada num contexto de pluralismo, deve preservar e até normalizar a solução aparentemente instável em que consistiu a «geringonça», mas não no sentido de uma perpetuação, como se fosse uma força ou aliança de forças partidárias, mas um processo que se renova, ou mesmo se refunda, dando início a uma nova geração de entendimentos e compromissos. Uma cristalização desse tipo tenderia a eliminar a fragilidade intrínseca dessa classe de solução governamental, uma fragilidade que, longe de ser um defeito, é na verdade uma virtude na medida em que, se consegue proporcionar um funcionamento estável, faz com que aumente o nível de resposta e de prestação de contas por parte do governo. Dois aspectos são valiosos num contexto que não raro é apelidado de pósdemocracia10. O primeiro, de que o acordo pluripartidário assenta em objetivos e metas, como um programa de interseção dos diferentes programas, inverte a percepção até então crescente de que os partidos se sentem pouco ou nada obrigados a se adequar aos programas eleitorais pelos quais foram eleitos. Em acordos como o da «geringonça» portuguesa, a pressão exercida pelos partidos não mandantes dentro da coalizão é mais firme e exigente do que se viesse da oposição ao governo. O eventual fracasso do programa é também responsabilidade deles, razão pela qual exigem e dispõem suas faculdades e condições políticas para que isso não ocorra. O segundo aspecto, traduzido em maior prestação de contas e capacidade de resposta, na verdade proporciona ao regime uma vida democrática mais apurada e, nesse sentido, com menos motivos de insatisfação. A voz das pessoas é ouvida não apenas em eleições, e as promessa eleitorais são cumpridas. Isto é uma resposta a uma crise da democracia indissociável da crescente percepção de que o espaço da escolha política é cada vez menor, em que o domínio da inevitabilidade e do «não há alternativa» é cada vez maior. Salientar estes aspectos ganha relevância na medida em que uma resposta desse tipo à crise da democracia abre o caminho para uma solução claramente distinta dessa outra que tem ganhado mais fôlego na atualidade: a dos movimentos populistas. Estes também dão uma resposta à crise da democracia e à impotência da vontade popular diante da apresentação de inevitabilidades, confiando em lideranças carismáticas antissistema, para isso avançando com programas políticos nacionalistas, de fronteiras fechadas, de exclusão, quando não persecutórios. Esta tendência populista deve ser inscrita numa tendência mais ampla de dessolidarização entre democracia e liberalidade que desde os anos 90 se aprofundou em escala global11. Aliás, irrompendo em democracias liberais, o populismo parece vir, de certo modo, no sentido de fazer aquelas convergirem com a tendência global para democracias iliberais. Obviamente, há outro populismo, de cariz emancipatório, que responde à crise da democracia e também à resposta populista dominante com uma semântica diametralmente oposta à desta. Em vez da exclusão e do particularismo nacional, promove-se a inclusão com base nos valores do universalismo12. Todavia, uma sintaxe igualmente assente em lideranças exorbitantemente carismáticas tem conduzido a uma de duas: ou a progressiva conformação ao sistema de líderes que se eternizam ou a progressiva degenerescência autoritária de líderes que também se eternizam. Se a primeira acaba por não produzir nenhuma ruptura com a crise da democracia, mais simulacro do que real mudança, a segunda acaba por se tornar disruptiva, sobretudo para o povo que a elegeu e, dessa forma, antidemocrática. O modelo político-partidário da designada «geringonça», fortemente ancorado na objetividade de um compromisso programático comum é, pelo contrário, escassamente apoiado por lideranças carismáticas. Nenhum dos três líderes partidários envolvidos prima por arrebatador carisma. Nenhum deles força a identificação entre a sua pessoa e a sua função, revendo-se bem mais ao serviço da função. Este quadro afasta riscos que se verificam no populismo emancipatório. Mas traz outros, entre eles o da transformação do sujeito político em centro e poder administrativo, com todos os problemas ligados ao controle político democrático da administração de tal poder, aos modos da sua distribuição e da justa oportunidade de nele cidadãs e cidadãos tomarem parte além das fidelidades partidárias.

À luz desse cenário, um novo ciclo deve significar a continuação do aprofundamento da democracia. Se em 2015 se avançou na democracia representativa, na medida em que se comprovou que o arco de governo se estendeu ao campo da esquerda, deixando de estar confinado aos três partidos habituais, em 2019 deve-se avançar na democracia participativa, no sentido de abrir e estender o espaço da negociação política e programática à esfera pública e aos diversos movimentos sociais e atores coletivos (mais ou menos tradicionais, mais ou menos orgânicos).

Aprofundar a democracia significa, por exemplo, acomodar a pluralidade de ideias e o debate sobre alternativas e propostas divergentes. Isto é, a convergência partidária à esquerda tem de criar condições para que a divergência política no campo progressista se expresse num espaço mais amplo, capaz de envolver pessoas e grupos exteriores a esses mesmos partidos. Sem esse envolvimento da sociedade civil, os partidos que compõem a «geringonça» correrão um sério risco de se enquistar em si próprios, em relacionamentos de poder meramente institucionais e ritualistas afastados do mundo da vida e da pólis. No fundo, é a própria democracia interna dos partidos que tem de ser aprofundada e dinamizada. Em suma, uma «geringonça 2.0» capaz de superar a geometria do acordo estritamente pluripartidário e que, por via de convenções abertas ou sob outro procedimento, consiga incluir no seu compromisso, de igual para igual, a voz de associações e cooperativas cívicas formalizadas e de grupos não formalizados de cidadãos reunidos em torno de objetivos políticos, assim como de cidadãos expressando-se a título individual, contribuiria para um equilíbrio muito melhor entre as dimensões participativas e representativas, aprofundando a social-democracia pelo seu lado democrático. Uma resposta assim, capaz de integrar na lógica do acordo pluripartidário uma dimensão participativa mais próxima da agenda do populismo emancipatório, pode, aliás, acabar garantindo o ponto de equilíbrio que melhor responda aos riscos característicos de cada uma dessas duas lógicas políticas.

A «geringonça» e as múltiplas escalas de ação política

Se se considera o quadro geral, a experiência de governo que se popularizou sob a designação de «geringonça» pode ganhar especial relevância no debate difícil sobre o destino da ue. A surpresa do sucesso do atual governo em Portugal significou um enorme alívio no continente ao se apresentar como via alternativa viável às políticas de austeridade. De certo modo, Portugal conseguiu fugir ao precipício rearticulando valores de coesão social que estiveram na origem do projeto europeu. Talvez por aqui se explique, pelo menos parcialmente, a nomeação de um ministro de Economia e Finanças português, Mário Centeno, para liderar o Eurogrupo. De qualquer modo, e embora tenha-se conseguido esse alívio após a pressão que ameaçava a integridade da ue, uma mudança de paradigma é um passo enorme que falta dar.

O futuro das democracias liberais europeias em muito depende da continuidade do projeto da ue e da capacidade desse bloco de Estados de romper com um ciclo de ressentimento político que cresce e se nutre do efeito socialmente devastador das políticas neoliberais. Num mundo cada vez mais interligado, a desagregação do projeto europeu em nacionalismos e populismos significará uma capitulação global diante das democracias iliberais, na verdade etapa intermédia para o cancelamento da democracia e das garantias sobre as quais esta se justifica, a começar pelos direitos humanos. Por outro lado, e mais do que depender das decisões conjuntas dentro do bloco, o futuro da ue joga-se em cada uma das democracias nacionais que a compõem. A construção de uma social-democracia radical deverá alicerçar-se na luta e no intenso debate político emanado das esferas públicas nacionais, ganhando assim raízes sólidas para a congregação de dinâmicas e movimentos sociais e coletivos mais amplos e influentes no âmbito internacional.

  • 1.

    Renato Miguel do Carmo: é sociólogo e pesquisador do Instituto Universitário de Lisboa (iscte-iul).André Barata: é filósofo e professor da Universidade da Beira Interior (ubi).Palavras-chave: austeridade, «geringonça», social-democracia, Portugal, União Europeia.. Trata-se de uma frente entre a União Democrática Popular (udp), de origem pró-albanesa mas que depois tendeu para um marxismo mais aberto, o Partido Socialista Revolucionário (psr, trotskista) e o Política xxi, um desprendimento do pcp. Em escala europeia, o Bloco de Esquerda faz parte do grupo Esquerda Unitária.

  • 2.

    Este artigo retoma a análise efetuada em R. M. do Carmo e A. Barata: «The ‘Contraption’ and the Future of Social Democracy: The Government Experiment in Portugal» em Open Democracy, 1/5/2017.

  • 3.

    Carlos Farinha Rodrigues (coord.), Rita Figueiras e Vítor Junqueiras: Desigualdade do rendimento e pobreza em Portugal, ffms, Lisboa, 2016.

  • 4.

    Jorge Caleiras e José Castro Caldas: «Emprego e desemprego: o que mostram e o que escondem as estatísticas?» em Manuel Carvalho da Silva, Pedro Hespanha e José Castro Caldas (coords.): Trabalho e políticas de emprego: um retrocesso evitável, Actual, Coimbra, 2017; Frederico Cantante e R. M. do Carmo: «Emprego e desemprego em Portugal: tendências recentes e perfis» em R. M. do Carmo, João Sebastião, Joana Azevedo, Susana da Cruz Martins e António Firmino da Costa (orgs.): Desigualdades sociais: Portugal e a Europa, Mundos Sociais, Lisboa, 2018.

  • 5.

    Rui Pena Pires, Inês Vidigal, Cláudia Pereira, Joana Azevedo e Carlota Moura Veiga: Portuguese Emigration Factbook 2015, Observatório da Emigração / cies-iul / iscte-iul, Lisboa, 2015.

  • 6.

    Termo inicialmente pejorativo, utilizado para definir a aliança como se houvesse sido engendrada de improviso, mas logo apropriado pelo governo [n. do e.].

  • 7.

    «Social Democracy is Floundering Everywhere in Europe, Except Portugal» em The Economist, 14/4/2018.

  • 8.

    Sheri Berman: «Against the Technocrats» em Dissent, inverno de 2018.

  • 9.

    Karl Polanyi: A grande transformação. As origens políticas e económicas do nosso tempo [1944], Edições 70, Lisboa, 2012.

  • 10.

    Colin Crouch: Post-Democracy, Polity, Cambridge, 2004.

  • 11.

    Fareed Zakaria: «The Rise of Illiberal Democracy» em Foreign Affairs vol. 76 No 6, 11-12/1997.

  • 12.

    Ernesto Laclau: La razón populista, fce, Buenos Aires, 2005. [Há uma edição em português: A ração populista, Três Estrelhas, São Paulo, 2013].

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad 2019, Dezembro 2019, ISSN: 0251-3552


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