Opinión
febrero 2024

El Salvador de Bukele: do autoritarismo cool ao partido único

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Nayib Bukele usou sua popularidade, fruto da redução da violência das maras, para acabar com a já debilitada democracia salvadorenha. Num contexto de colapso da oposição, as eleições de 4 de fevereiro selaram seu predomínio absoluto sobre o conjunto das instituições.

<p><em></em>El Salvador de Bukele: del autoritarismo <em>cool</em> al partido único</p>

Às 18h56, apenas duas horas após o encerramento da votação, um show de fogos de artifício tomou conta do céu salvadorenho. O motivo foi a autoproclamação de Nayib Bukele, o presidente – e candidato inconstitucional à reeleição – como o vencedor da disputa eleitoral «com mais de 85% dos votos». Algo no mínimo surpreendente naquele momento, já que muitas urnas nem haviam começado a ser apuradas. Mas Bukele já tinha seus próprios dados.

O Tribunal Supremo Eleitoral (TSE), máxima autoridade em matéria eleitoral, não se pronunciou. No imaginário público, o resultado era inapelável. Horas depois, às 22h15, Bukele apareceu na sacada principal do Palácio Nacional e se apresentou como presidente reeleito diante de uma multidão que celebrava a entrega de todo o poder a uma única pessoa e a um único partido.
Mais uma vez, Bukele fez isso sem que o TSE se manifestasse ou fornecesse qualquer informação precisa e confiável. «Hoje El Salvador quebrou todos os recordes de todas as democracias do mundo», comemorou o mandatário de 42 anos diante de pessoas extasiadas que o aplaudiam em meio a vivas e vuvuzelas.

«Não apenas ganhamos pela segunda vez a Presidência da República, com mais de 85% dos votos, como também ganhamos a Assembleia Legislativa, com no mínimo 58 dos 60 deputados. É possível que sejam mais», reiterou Bukele, quando algumas mesas de votação ainda não haviam contabilizado nenhum voto das eleições legislativas e os sistemas de transmissão apresentavam falhas. Bukele aproveitou esse discurso para anunciar que a partir de 1º de maio, quando a nova Assembleia Legislativa tomar posse, El Salvador viverá sob um modelo de partido único. «Seria a primeira vez que num país existe um partido único num sistema plenamente democrático. Toda a oposição foi pulverizada», afirmou. O resultado foi oficializado por Bukele. Cabe agora ao TSE fazer com que os números coincidam.

Naquele momento, o site de resultados preliminares do TSE indicava que, com 30% das urnas apuradas, Bukele havia obtido mais de 1,2 milhão de votos. Já o seu concorrente mais próximo, Manuel Flores, da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), registrava apenas 110.244 votos. A eleição presidencial parecia estar encerrada. Mas faltavam os dados sobre as eleições legislativas.

Enquanto isso, os presidentes da Guatemala, de Honduras e da Nicarágua, assim como os governos dos Estados Unidos e de alguns países da Europa, apressaram-se em parabenizar Bukele após os anúncios nas suas redes sociais e na sacada do Palácio Nacional. Não mencionaram que sua candidatura era inconstitucional e que o mais alto tribunal eleitoral não havia oficializado o resultado. Simplesmente acreditaram em sua palavra. No caso centro-americano, em meio à violência generalizada, a figura do presidente salvadorenho é muito popular, e vários funcionários prometeram aplicar o «método Bukele» nos seus próprios países. Até mesmo Patricia Bullrich, ministra da Segurança da Argentina, país cujos níveis de insegurança não se assemelham aos da América Central, manifestou sua vontade de «adaptar» o modelo salvadorenho.

«O povo salvadorenho falou. E não apenas falou alto e claro: falou da forma mais contundente em toda a história da democracia do mundo inteiro», disse o presidente num país onde, segundo o Latinobarómetro, menos de 50% da população apoia a democracia.

Empresário e publicitário de profissão, Bukele conhece muito sobre símbolos e sabe como usá-los para deixar suas mensagens claras. O palco que ele preparou para se proclamar vencedor não foi casual. Em seu primeiro triunfo presidencial, ele pronunciou um discurso de vitória num palanque em outra praça, um pouco menor. Desta vez, decidiu subir na sacada de um edifício público histórico e fazer um discurso em que se dedicou a atacar todas as organizações, governos e jornalistas que o criticaram (ou revelaram a corrupção de sua gestão), e se orgulhou de todos os abusos de autoridade que cometeu desde 2019.
Dentro do Palácio Nacional, sua família e seus funcionários (muitos deles acusados de selar pactos com membros de gangues, cometer dezenas de atos de corrupção e se enriquecer injustificadamente) comemoraram o fato de que passarão pelo menos outros cinco anos no poder. No final do discurso, entre confetes e uma longa queima de fogos de artifício, ouviu-se a famosa canção do REM «It's the End of the World as We Know It (and I Feel Fine)» [É o fim do mundo como o conhecemos (e me sinto bem)]. Nesse clima de festa, aquela raquítica democracia que morreu em 1º de maio de 2021, com o golpe que o Legislativo e o Executivo deram no Poder Judiciário, foi completamente sepultada.
Bukele é o primeiro presidente salvadorenho em quase um século a conquistar um segundo mandato. Mas, tal como os líderes que o precederam, ele também precisou violar repetidamente e sem consequências a Constituição e as leis do país. Nesse caminho inconstitucional, deixou claro que não pouparia meios para acumular todo o poder de um dos menores países do continente americano.

Aquela ironia insípida de Bukele de se apresentar como «ditador de El Salvador», «o ditador mais cool do mundo» e «imperador de El Salvador» em sua biografia da rede X, ou de mudar sua foto de perfil pela do ditador fictício Haffaz Aladeen, personagem do comediante Sacha Baron Cohen, tornou-se realidade. Bukele solidificou a ditadura que ele deu à luz há três anos. O mais grave não é que ele próprio tenha se encarregado de comunicar aos salvadorenhos e ao mundo inteiro que já tinha resultados e que havia pulverizado a oposição, mas que tenha feito isso fez debaixo do nariz de um TSE curvado aos seus caprichos.

A democracia da qual Bukele tanto fala quando questionam suas formas de governar tem um cheiro rançoso de ditadura com perfume popular.

Do precipício ao abismo 

A sociedade salvadorenha teve a oportunidade de salvar a democracia, de se afastar do autoritarismo. Mas optou por enterrar aquele sistema, que para muitos não deu resultados visíveis e que a propaganda oficial se encarregou de demonizar.
Para entender como El Salvador decidiu depositar todo o poder numa única pessoa, é necessário levar em conta de onde Bukele veio e como ele governou desde 1º de junho de 2019. Nas eleições daquele ano, o então candidato millennial tornou-se uma esperança para milhões de pessoas que estavam fartas do sistema bipartidário que governou o país durante 30 anos por meio de duas forças políticas que nasceram durante a guerra civil: o Aliança Republicana Nacionalista (Arena), o partido salvadorenho de extrema direita, e a FMLN, que nasceu da guerrilha. Esse período foi caracterizado por altíssimos índices de violência que comoveram o país e pela corrupção que permeou todo o aparelho de Estado.

Para ganhar o apoio da população e poder competir nessas eleições, Bukele fez todo o possível para que o então partido oficial, FMLN, o expulsasse de suas fileiras. Assim, pôde se declarar independente daquela política rançosa que mergulhou o país na violência e na corrupção. Embora tenha tentado legalizar o partido Novas Ideias, seu projeto político personalista, não teve tempo suficiente. Acabou então tomando a decisão de ingressar na Grande Aliança pela Unidade Nacional (GANA), partido formado por dissidentes da Arena. Nessas eleições, Bukele venceu com 53,1% dos votos.

O atual mandatário é, essencialmente, um produto dessa velha política, tanto que grande parte dos líderes do governista Novas Ideias também vêm dos antigos partidos hegemônicos.

Seu primeiro mandato passará à história por ter conseguido reduzir os homicídios em troca de negociações com a Mara Salvatrucha e as facções Sureños e Revolucionarios del Barrio 18, as três principais gangues de El Salvador; por ter invadido com os militares a Assembleia Legislativa e ameaçado dissolvê-la; e por ter implementado uma espécie de campo de concentração como política durante a pandemia de covid-19. Isso sem falar das dezenas de denúncias de corrupção, das destituições ilegais do procurador-geral e dos juízes da Suprema Corte de Justiça, e da revogação de diversas garantias constitucionais com o regime de exceção que está prestes a completar dois anos. Como parte de sua política contra as gangues, o governo prendeu mais de 75.000 pessoas sem qualquer investigação prévia, com o «custo» de centenas de mortes dentro das penitenciárias do regime de exceção, no âmbito de uma efetiva campanha com estética cinematográfica. Mas o governo também se caracterizou pelos constantes ataques à imprensa e às organizações sociais, e por ter usado todo o aparato estatal para catapultar a candidatura inconstitucional do presidente, além de proteger dezenas de funcionários que foram sancionados pelos Estados Unidos e apoiar outros tantos que encontraram um Eldorado na administração pública.

Com esta nova casta querendo permanecer no poder, os salvadorenhos foram votar em 4 de fevereiro. Os já desprestigiados partidos da oposição, dizimados pelos maus resultados eleitorais, enfrentaram uma situação difícil na qual o Ministério da Fazenda se negou a lhes entregar a «dívida política», o dinheiro que o Estado concede aos partidos para que possam fazer campanha. Também enfrentaram diversas manobras contra eles, com a cumplicidade do TSE.
Mas o eleitorado acabou pouco se importando com tudo isso. E não é difícil imaginar por quê. Parte do triunfo do governo Bukele foi resultado da militarização das forças de segurança, da implementação de um regime de exceção e da captura indiscriminada de suspeitos. Graças a essa política repressiva, o governo conseguiu que as gangues que dominaram grande parte do território acabassem na prisão ou ocultas. E a máquina de propaganda aproveitou o ressentimento que, com justa razão, a população tem em relação a esses grupos criminosos, através de uma inédita espetacularização das detenções – e da humilhação dos detidos. 

Um motorista de Uber resumiu desta forma a situação poucos dias antes das eleições: «A verdade é que eles se enriqueceram como todos os [políticos] anteriores, mas pelo menos trouxeram segurança. E se não votarmos nele, em quem votaremos?» Essa retórica permeou até algumas vítimas do regime de exceção que perderam seus entes queridos na prisão. Muitos familiares de inocentes presos dizem que Bukele fez tudo certo, embora lamentem as capturas arbitrárias, e ainda assim estão dispostos a renovar seu apoio a ele.

Esse salto para o vazio também é possível devido ao desmantelamento da oposição política, que durante o processo eleitoral preferiu se dividir e zelar por seus interesses pessoais em vez de se unir e lutar para manter o sistema democrático que tanto sangue custou a El Salvador. Os membros da oposição não souberam viver à altura do que a história lhes exigia e agora veem como este capítulo termina de forma amarga.

E agora?

Bukele venceu as eleições sem ter apresentado nenhuma proposta nova. A oferta política para obter votos foi para fomentar o medo do passado. Ele estava tão certo de sua vitória que delegou a campanha aos seus deputados. Não teve um único encontro com as massas. Preferiu usar a estrutura de comunicação do governo, o telejornal e o jornal que criou para posicionar sua imagem, além da rede de fãs digitais que trabalham para aumentar ainda mais sua popularidade.
O que ele prometeu é que nos próximos cinco anos dará continuidade ao seu governo. Mas o que isso significa exatamente? Seguirá no Estado a máfia política que criou esquemas de corrupção que permitiram pactos com gangues, irregularidades em compras emergenciais durante a pandemia de covid-19 e abusos durante o regime exceção? Ele continuará violando sistematicamente os direitos humanos? Continuará negociando com criminosos para garantir uma paz que, quando quebrada, trará um banho de sangue?

«Nestes próximos cinco anos, esperem para ver o que faremos porque continuaremos fazendo o impossível», disse Bukele no discurso de comemoração, de forma tão vaga quanto possível. Essa foi uma constante no seu primeiro governo. Ele chegou a declarar que inclusive não tinha plano de governo e colocou como «informação reservada» todos os dados oficiais que jogassem luz sobre sua gestão.

O que Bukele deixou claro na noite de 4 de fevereiro é que intensificará seu ataque contra qualquer entidade que o critique sobre o fato de ter desmantelado todos os sistemas de contrapeso e controle que o poderiam deter. Ele fez isso de forma sistemática contra a imprensa e as organizações sociais, não hesitando em lançar sua artilharia retórica contra qualquer governo estrangeiro que o questione.

Essa investida contra organizações, críticos e jornalistas obrigou muitos a se exilarem em outros países, como é o caso de antigos magistrados da Sala Constitucional, de sua antiga advogada de defesa e de pelo menos uma dezena de jornalistas, segundo a Associação de Jornalistas de El Salvador (APES). O próprio presidente ataca jornalistas críticos. Entre seus ataques na rede X, Bukele afirmou em maio de 2023, fazendo referência ao magnata e filantropo George Soros, alvo constante da direita radical: «Em todos os países latino-americanos existem meios de comunicação e ‘jornalistas’ pagos por Soros. Mas na verdade não são jornalistas, são ativistas políticos com uma agenda mundial definida e perversa». 
As leis, liberdades, deveres e vontades dos salvadorenhos dependem agora dos caprichos de uma pessoa e de seus irmãos que governam com ele nas sombras. Os direitos dos salvadorenhos chegarão até onde Bukele quiser. Não há quem lhe imponha um limite, como ficou demonstrado nas últimas eleições.

Pela primeira vez, Bukele não reclamou do processo de fiscalização nem criticou abertamente o TSE. O TSE foi tão permissivo que até permitiu que o Novas Ideias fizesse proselitismo junto às urnas em alguns lugares de votação, uma clara ilegalidade no processo. E, no final, foi o presidente quem anunciou os resultados.

Bukele proclamou-se vencedor em meio a graves irregularidades que indicam uma fraude eleitoral para aumentar ainda mais suas maiorias. Mas não importa: a narrativa já está instalada, e quem a questionar será acusado de golpista. Bukele impôs um partido único e o fez em cumplicidade com um TSE que, longe de ser um árbitro imparcial e garantir a confiança no processo eleitoral, demonstrou estar curvado aos pés do ditador.

Tradução: Eduardo Szklarz



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