Artículo
NUSO Nº Outubro 2007

Avanços e contradições sociais e econômicos no Brasil

O Brasil adotou um arranjo institucional particular no financiamento da seguridade social. Se por um lado ele trouxe vantagens, como a universalização da prestação de serviços sociais básicos e a expansão da concessão de benefícios previdenciários, também resultou em desvantagens, como a necessidade de uma carga tributária muito acima da média das economias emergentes. Se houve uma inequívoca melhora nas prestações de ações e serviços básicos e nas concessões de benefícios, também é fato que o padrão de financiamento está prejudicando o desempenho da economia, com evidentes danos às condições de sua competitividade externa. Será que o país enfrentaria um dilema: ou lograr crescimento econômico acelerado, sem um adequado bem-estar social, ou melhorar a pobreza e a desigualdade mas à custa de frear ou retardar o crescimento?

Avanços e contradições sociais e econômicos no Brasil

OBrasil foi um dos líderes mundiais em ritmo de crescimento econômico até os anos 70. A partir do primeiro choque do petróleo, o país mergulhou em um longo ciclo de desaceleração da economia e descontrole inflacionário. A estabilização advinda da criação do Real, em julho de 2004, resultou numa economia com baixo dinamismo, que oscila entre anos de maior ou menor crescimento, mal chegando a uma média anual de 2,5%. A virada do século coincidiu com um dos ciclos de maior expansão da economia mundial do pós-guerra, e nem assim o Brasil sequer consegue chegar perto da média do crescimento da América Latina, continente que já se expande muito aquém da média das economias emergentes.

Se não consegue repetir o ritmo de crescimento econômico do passado e de economias semelhantes, ao menos o país tem conseguido sucesso na melhoria do bem-estar social, especialmente na redução da pobreza e da desigualdade social. Depois do Real, sem partir de uma estratégia global e planejada, o governo federal adotou uma postura mais ativa na formulação e implantação das políticas sociais, antes priorizando programas ditos estruturantes, como o ensino fundamental e a atenção à saúde, e mais recentemente ampliando os benefícios sociais individuais, da previdência à transferência de renda aos mais pobres. Apesar de todos os avanços, os indicadores sociais brasileiros ainda ficam aquém dos registrados até em economias mais pobres da região.

As finanças públicas jogam um papel fundamental nas questões e nos debates que marcam o crescimento econômico e o chamado bem-estar social. A tributação assume um lugar de destaque. O enfrentamento das crises externas do final dos anos 90 e a consolidação da estabilização de preços foram baseados em um rigoroso ajuste fiscal, que, por sua vez, foi alicerçado basicamente em uma rápida e intensa expansão da carga tributária. Como tal incremento foi realizado em grande parte à custa de criação e majoração de contribuições sociais, tal fenômeno também permitiu a expansão dos gastos públicos em ações e serviços sociais, ainda que a maior parte da receita adicional tenha sido canalizada para o aumento do superávit primário e o custeio do serviço da dívida pública.

Neste contexto, a questão tributária (numa visão mais restrita) e as questões fiscais e também federativas (numa visão mais ampla) acabam tendo um peso muito importante na agenda nacional de debates, seja na esfera técnica, seja na política ou na busca da retomada do crescimento econômico e social.

Acredita-se que a melhora do diagnóstico sobre os problemas abrirá espaço para especular melhor sobre alternativas à solução dos nós tributário, fiscal e federativo, o que pode ser uma contribuição relevante para o avanço da economia e da sociedade. Qual é o fiscal space (espaço fiscal) adequado para o Brasil? Como ele se desdobra em serviços e ações públicas as mais distintas, da infra-estrutura econômica básica até os programas sociais, passando pelo serviço da dívida pública? Qual o tamanho da carga tributária compatível com as necessidades sociais e, ao mesmo tempo, com um crescimento no nível das demais economias emergentes? Quais as relações cruzadas entre as políticas tributária e fiscal, a macroeconomia e a organização do Estado do Bem-Estar Social?

Uma agenda diferenciada no espaço e no tempo

Conciliar crescimento econômico e melhoria do bem-estar social está na essência da ciência econômica e, portanto, torna-se difícil resenhar uma bibliografia que atravessa séculos. Em relação ao debate mais recente, vale lembrar que o chamado «Consenso de Washington» está falido para alguns e esgotado para outros. O fato é que não há um novo consenso, ao menos entendido como um conjunto maior e ordenado de reflexões e recomendações, com apoio majoritário junto aos organismos internacionais ou às principais universidades ou agentes de mercado. A opinião mais convergente é a de que não deve haver uma pauta única de questões ou soluções. Não há um novo consenso, nem de outro lugar que não seja Washington.

Existe uma nova orientação no sentido de que cada país deve ter capacidade de identificar e hierarquizar seus principais problemas (Hausmann/Rodrik/Velasco). Isto significa uma agenda diferenciada no espaço e no tempo. Conseqüentemente, cada país deve traçar uma estratégia e implantar as soluções que julgue mais adequadas para o enfrentamento de suas questões.

As mudanças de paradigmas e conceitos também têm marcado o pensamento em torno da tributação e das finanças públicas no exterior, embora o Brasil esteja muito atrasado, ou mesmo ausente, na discussão que acontece nos fóruns internacionais.

A necessidade de convergência do tamanho da dívida e do déficit público já vem sendo questionada há anos na Europa, justamente por conta da criação da moeda única, o Euro. São várias as frentes de discussão em torno dos efeitos do Stability and Growth Pact (SGP): algumas se preocupam mais com o baixo dinamismo das economias, reclamando que a demanda governamental contribuiria para o desaquecimento e as políticas econômicas seriam demasiado contracionistas; outras debatem sobre os novos membros da comunidade, cujas necessidades de infra-estrutura seriam imensas diante da capacidade fiscal corrente (Buiter; Gali/Perotti, dentre muitos outros).

Até organismos multilaterais tiveram que reagir e opinar sobre os vínculos entre política fiscal e investimento público (FMI 2004a). Nada cederam no princípio de que a austeridade fiscal é indispensável para a estabilidade de preços, mas começam a fazer pequenas e pontuais concessões. Um exemplo próximo é o tratamento dispensado às empresas estatais produtivas e que obedecem a critérios de governança corporativa, que aceitaram e até defenderam que pudessem escapar dos controles e rigores impostos aos governos em geral.

Há uma evolução, ou distensão, no pensamento dominante dentre os organismos internacionais em matéria fiscal. Eles cada vez se preocupam mais com as baixas taxas de investimentos públicos prevalecentes nas economias menos desenvolvidas (Martner/Tromben). Alguns concentram mais as atenções nos investimentos estatais em programas de infra-estrutura, apontando este como um fator crucial para explicar o baixo dinamismo econômico dos países latinos (Easterly/Servén). Enquanto técnicos do Banco Mundial pesquisaram a abertura de espaço fiscal (fiscal space) para os investimentos nos orçamentos públicos (Calderón/Easterly/Servén), os do FMI procuraram identificar os incentivos (making room) para serem mais eficientes e eficazes (Hemming/Ter-Minassian).

O tamanho do Estado e do gasto público Há um descompasso entre o debate nacional e o internacional. Uma primeira ilustração é o caso das chamadas parcerias público-privadas. Curiosamente, na mesma época em que eram apregoadas por autoridades locais como panacéias para o crescimento, até o FMI chegou a divulgar uma posição oficial em que louvava o instrumento como meio de fomentar investimentos, mas deixava claro suas limitações: nunca tinha sido o motor dinâmico das decisões de investir, nem nas poucas experiências mais exitosas de países ricos. O FMI também deixava claro sua preocupação com a transparência fiscal, em particular com a devida mensuração e identificação de passivos contingentes (FMI 2004b).

A literatura brasileira é rica em análises sobre o comportamento e a estrutura das contas públicas (Giambiagi/Ronci; Velloso 2004). Daí são inferidas recomendações de metas e políticas fiscais. Porém, elas sempre giram em torno dos mesmos paradigmas conceituais. O referencial é sempre o cálculo da dívida líquida do setor público e de sua variação derivando das necessidades de financiamento do setor público, ou seja, vinculado ao financiamento do Estado, ou, mais especificamente, com a garantia de sua solvência. Não escapa deste fato nem mesmo a proposta recente de que a estratégia fiscal deveria mudar para se buscar o déficit nominal zero, ainda que no médio ou longo prazo. A criação de um espaço fiscal adequado para a elevação dos investimentos tem sido ignorada pela maioria dos especialistas, acadêmicos e técnicos do governo, e mais ainda por autoridades e parlamentares. Uma rara exceção é Afonso, Araújo e Biasoto (2005). A carência já começa por estatísticas atualizadas, coerentes e consistentes, para não citar o desafio de obtê-las em condições de ser usadas para uma investigação histórica de médio ou longo prazo. O avanço rápido da desestatização talvez tenha ajudado também a diminuir o interesse dos especialistas na atuação das empresas que remanesceram como estatais e que ainda têm peso importante em áreas de infra-estrutura, especialmente em energia e saneamento.

Um último aspecto a destacar nesta breve panorâmica bibliográfica respeita ao papel e ao tamanho do Estado nas economias modernas, que teria sofrido importantes transformações nos últimos anos. A literatura é marcada pelas análises dos países ricos. Cresce a idéia de que um nível menor de gasto público seria suficiente para promover os objetivos sociais básicos. O gasto público médio em uma amostra de 22 países industrializados, que atingiu o pico de 52% do PIB nos últimos 20 anos, caiu em quase 7% do PIB e em 2002 já se encontrava abaixo dos níveis de 1982 (Tanzi/Schuknecht). Por categoria de gasto, a redução dos encargos da dívida foi maior do que com as despesas primárias, e dentre elas o gasto decresceu mais com transferências e subsídios do que com consumo ou investimento. O Brasil fez, na última década, um movimento no sentido exatamente inverso ao dos países mais ricos: aumentou o tamanho do gasto público (Afonso/Araújo/Biasoto). A conta das administrações públicas nas contas nacionais acusou, entre 1995 e 2003, uma elevação da despesa não-financeira de 2 pontos do PIB, tendo caído o consumo e os investimentos e aumentado os gastos com benefícios previdenciários e assistenciais em 2,7 pontos do PIB. Isto fora o aumento dos gastos com juros. Segundo as contas nacionais, ele foi de 2,8 pontos no mesmo período. O período mais recente, inclusive a expectativa para 2007 e 2008, registra nova expansão do gasto governamental corrente, em grande parte puxado pelo aumento ainda mais acentuado no gasto com transferências. É o caso dos benefícios da previdência, que crescerão por conta de aumentos reais do salário-mínimo e da expansão das concessões de auxílio-doença e planos assistenciais, refletindo a consolidação dos programas federais como Bolsa-Família, e, como sempre, dos encargos da dívida. Ainda que a taxa de juros seja decrescente, não custa lembrar que ela incide hoje sobre um estoque muito maior que no passado.

O tamanho do gasto público entrou na agenda nacional de debates, o que é um avanço em si. As proposições de encaminhamento é que não mudaram muito. De um lado, alguns seguem o receituário recorrente do aumento da desvinculação de receita orçamentária; há algum tempo também passaram a defender novos limites, como déficit nominal zero ou teto e redução de gasto corrente; e, na última moda, defendem uma reforma previdenciária que restrinja o acesso aos benefícios (Giambiagi; Velloso 2006). De outro, ainda que com muito menos espaço na mídia, existem os que defendem que não há déficit na previdência ou seguridade social, porque as receitas de contribuições, antes de aplicada a desvinculação federal, seriam mais do que suficientes para custear todos os gastos típicos do segmento; na verdade, sem aquela medida excepcional, o orçamento do segmento geraria superávit (Marques/ Mendes).

Para evitar ou atenuar esta polarização do debate (que parece esconder um componente ideológico nas duas visões extremadas), um caminho útil poderia ser voltar à literatura internacional e ver o enfoque recentemente adotado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), na esteira de outras reflexões no exterior, especialmente no âmbito europeu, em torno da chamada «coesão social». Para uma análise sobre o caso brasileiro, ver Serra e Afonso (2007). É possível escapar de uma visão meramente contábil, que reflete a mera comparação entre fluxos ou suas variações, sem maior preocupação sobre os determinantes ou as conseqüências dos movimentos ou dimensões, e adotar também conceitos sociológicos. Tal análise procura dosar elementos: de um lado, as origens do financiamento público dos gastos sociais; de outro, a dimensão e, sobretudo, o acesso a tais despesas, de modo a extrair uma agenda de reformas socialmente mais justa (Machinea). Aplicado o referencial teórico da coesão social no Brasil, poderiam-se explorar diversas questões, tais como: até onde o sucesso da universalização dos serviços com expansão e diversificação das fontes de financiamento não estaria também impondo um custo muito alto para a economia brasileira, ao retardar e frear a retomada do crescimento econômico?

É consenso a busca de um espaço fiscal que abra novas possibilidades para uma retomada acelerada e firme dos investimentos em infra-estrutura e, ao mesmo tempo, não constitua retrocessos na universalização do acesso da população aos bens e serviços públicos. Nenhum especialista tem dúvida de que o país precisa equacionar, de um lado, a manutenção da austeridade fiscal e, de outro, a retomada dos investimentos públicos indispensáveis e sua manutenção num patamar mínimo de razoabilidade. Porém, o pouco que já se avançou no debate nacional foi, no máximo, para se identificar tal desafio.

Na tentativa de fomentar o debate interno e especular sobre alternativas para elevação dos investimentos públicos, é aqui defendida a hipótese de que as diferentes formas de estruturação do setor público e das relações entre este e o aparelho econômico construíram realidades de grande complexidade, dificultando enormemente a busca de medidas sintéticas e a realização de comparações internacionais.

Neste contexto, um ponto central na interconexão entre políticas e práticas macroeconômicas e sociais no Brasil está no padrão de financiamento da seguridade social. O gasto público com proteção social, incluindo previdência e saúde, normalmente é financiado, na maioria dos países, por intermédio da cobrança de contribuições incidentes sobre a folha salarial. O Brasil apresenta um peculiar padrão de gasto e financiamento das ações e serviços da seguridade social, que, por definição constitucional, compreende a previdência, a saúde e a assistência social. A Constituição promulgada em outubro de 1988 inovou, não apenas ao adotar esse conceito de seguridade, mas também ao prever uma diversificação das bases de incidência das contribuições destinadas ao seu custeio: além da folha salarial, também compreendem as vendas e os lucros das empresas, além de rendas de loterias. No próprio texto constitucional foram detalhadas outras regras sobre as finanças dessas ações estatais – em destaque, a apresentação de um orçamento separado da seguridade. As mudanças mais relevantes da mesma Constituição, entretanto, resultaram inegavelmente em fortes pressões pela elevação do gasto, entre elas a universalização do acesso à saúde, a expansão da previdência para trabalhadores rurais, a fixação do salário-mínimo como piso de benefício e a criação de renda mensal vitalícia para idosos e deficientes sem renda.

Na prática, o arranjo institucional das finanças da seguridade nunca foi adequada e plenamente implantado. O gasto com benefícios previdenciários e assistenciais cresceu explosivamente, inclusive nos regimes próprios de previdência dos servidores públicos. Em poucos anos, mudanças constitucionais começaram a ser promovidas e levaram ao abandono da solução universal pensada pelos constituintes. Os defensores do regime geral de previdência social, primeiro, tentaram impedir que a arrecadação das contribuições para a seguridade social fosse utilizada como fonte de custeio das aposentadorias e pensões dos servidores públicos federais e, depois, optaram por criar uma vinculação das contribuições dos empregadores e dos empregados sobre a folha salarial exclusivamente para a previdência. As autoridades fazendárias, por sua vez, reagiram criando um mecanismo provisório de desvinculação geral da receita da União, sucessivamente prorrogado e que acabou induzindo a uma forte expansão das contribuições não compartilhadas com outras esferas de governo. Posteriormente, os defensores da saúde, cuja universalização resultou na organização de um sistema nacional descentralizado, reagiram reclamando e obtendo, primeiro, a criação de uma contribuição provisória sobre movimentação financeira vinculada ao setor e, depois, uma vinculação geral da receita de impostos.

As mudanças institucionais resultaram numa expansão de receitas e despesas públicas. A carga tributária brasileira cresceu intensamente, superando a casa de 35% do PIB. A arrecadação de contribuições (que no Brasil não compreende apenas salários) já supera a dos impostos clássicos.

Há anos o Brasil vem realizando um ajuste fiscal rigoroso e reconhecido até internacionalmente. A questão é que, cada vez mais, tal ajuste se apóia numa expansão contínua e crescente da carga tributária. Por mais que algumas autoridades tentem negar o que a matemática mais elementar revela (afinal, a carga é uma simples conta aritmética, a receita dividida pelo produto), não há como continuar evitando ou fugindo de questões fundamentais para o debate macroeconômico nacional.

No Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo, quando os governos arrecadam tributos, diminuem, exatamente no mesmo montante, a renda disponível das empresas e famílias. O aumento da carga tributária tem como contrapartida inevitável e imediata a redução das disponibilidades financeiras do setor privado.

O que é sim possível de retrucar, recorrendo à macroeconomia clássica, é que os governos devolvem às famílias parte da renda que delas subtraem a título de transferências, na forma de benefícios (previdenciários e assistenciais) e de juros da dívida pública. É inegável que no Brasil, nos últimos anos, tanto cresceram a receita tributária quanto os gastos com transferências de renda.

O tamanho do gasto público também cresceu, especialmente após a criação do Real, puxado por dois componentes de transferência de renda, benefícios sociais e juros da dívida pública. Na verdade, a demanda governamental por bens e serviços não tem crescido. Pelo contrário, a taxa de investimento público retrocedeu sensivelmente. Os benefícios da previdência já superam a casa de 12% do PIB. A descentralização fiscal avançou, especialmente em torno da saúde, com participação crescente dos municípios. O governo federal, por sua vez, vem aumentando sua presença na assistência social, pela forte expansão que promove na cobertura do programa unificado de transferência de renda às famílias mais pobres.

No entanto, também é inegável que a carga tributária atinge um contingente muito maior do que o de beneficiários daquelas transferências. Aliás, a carga atinge todos os brasileiros – ainda mais pela dominância dos tributos indiretos, cujos aumentos certamente são repassados em sua maior para os preços, numa economia fortemente oligopolizada como a brasileira. A grande maioria destes contribuintes não ganha por ser aposentado, pensionista ou bolsista, quanto menos rentista.

Mesmo neste antigo e esquecido conceito de carga tributária líquida, o aumento da parcela da renda nacional absorvida pelos governos, que automaticamente reduz a parcela do setor privado, tem efeitos importantes para desacelerar ou mesmo travar os chamados «efeitos multiplicadores» da economia, porque os governos não aproveitaram o aumento da carga para ampliar as parcelas próprias no consumo e no investimento. Este último, que é visto como o elemento dinâmico nas teorias não-clássicas, amarga as mais baixas taxas das últimas décadas: se este for um ano excepcional para os bens de capital, a taxa de investimento poderá subir para 20% do PIB, a metade da vigente na China, a título de comparação.

Não há como dissociar o debate do tamanho e da qualidade da carga tributária do desempenho macroeconômico brasileiro, aquém das demais economias emergentes e ficando para trás até mesmo dentro da América Latina. Por certo, a tributação não é a única explicação para o fraco dinamismo, muito menos será a panacéia para acelerar o crescimento nacional. Entretanto, cresce o consenso de que este é um componente decisivo para explicar os problemas e, conseqüentemente, para as soluções. Um bom caminho para avançar nesse debate seria dedicar mais tempo a dimensionar melhor e compreender a composição da carga tributária nacional do que gastar tanto tempo e esforços para negar a matemática mais elementar.

Conclusão O Brasil adotou um arranjo institucional particular no financiamento da seguridade social. Por certo, não se pode dizer que é um modelo, muito menos que seja ideal. Se por um lado ele trouxe vantagens, como a universalização da prestação de serviços sociais básicos e a forte expansão da concessão de benefícios previdenciários e assistenciais, também resultou em desvantagens, como a necessidade de uma carga tributária muito acima da média das economias emergentes, deteriorando a qualidade da tributação no país.

Portanto, se houve uma inequívoca melhora nas prestações de ações e serviços básicos e nas concessões de benefícios, também é fato que o padrão de financiamento que se precisou lançar mão está prejudicando o desempenho da economia, com evidentes danos às condições de sua competitividade externa. A questão-chave que começa a despontar desse cenário é a seguinte: a sociedade brasileira não consegue conciliar boas políticas econômicas e sociais? Será que o país enfrentaria um dilema: ou lograr crescimento econômico acelerado, sem um adequado bem-estar social, ou melhorar a pobreza, a desigualdade e as condições básicas, mas à custa de frear ou retardar o crescimento? Na medida em que disparou um processo de expansão crescente e acentuada dos gastos públicos e da carga tributária, será que o círculo virtuoso não se transfigurou num círculo vicioso?

Ora, não há dúvidas de que gastando-se muito mais no social foi possível reduzir pobreza, até em resposta direta ao aumento de benefícios previdenciários e à transferência de renda. Porém, ao financiar tal processo com crescentes tributos indiretos, não se acabaria reduzindo a renda disponível do setor privado, freando a expansão da demanda interna e, pior, penalizando os mais pobres que arcam com um ônus proporcionalmente maior devido ao aumento da carga concentrado em tributos indiretos?

Por que o país não consegue retomar o padrão histórico de crescimento e nem acompanhar seus pares, latinos e emergentes? O sistema tributário e a estrutura fiscal constituem entraves, parciais, ou obstáculos intransponíveis a tal processo? A reforma tributária e uma fiscal, incluindo ou não mudanças na previdência e na administração, são condições necessárias ou suficientes para a retomada do crescimento?

Referências bibliográficas

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Este artículo es copia fiel del publicado en la revista Nueva Sociedad , Outubro 2007, ISSN: 0251-3552


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