Conjuntura

O X como megafone neorreacionário

As guerras que Elon Musk poderia perder


Nueva Sociedad Novembro - Dezembro 2024

O X, ex-Twitter, acumula críticas por sua transformação na máquina de expansão da ultradireita internacional. É cada vez mais discutida a deriva dessa rede social sob o comando de Elon Musk, mas as alternativas seguem sendo minoritárias. Com mais de 250 milhões de usuários – inclusive presidentes, líderes políticos e jornalistas –, não é fácil encontrar um substituto no momento.

<p>O X como megafone neorreacionário</p>  As guerras que Elon Musk poderia perder

«A internet é como o Velho Oeste. Acreditávamos ser os cowboys, mas somos os búfalos.» Essa citação que o autor holandês Geert Lovink atribui ao antropólogo autodenominado AnthroPunk em seu livro Sad by Design1 não parece se aplicar a Elon Musk, o Liberty Valance que domina a savana mais influente da política internacional, como o bandido de O homem que matou o facínora (1962) que assolava o Velho Oeste. Musk, o homem da fortuna de 221 bilhões de dólares estadunidenses, transformou-se em uma ameaça não só para a esquerda e os movimentos sociais on-line, mas também para uma parte fundamental do establishment. Musk é hoje o principal expoente da nova extrema-direita – essa que nos Estados Unidos é conhecida como «Alt-Right» – e selou uma aliança com Donald Trump, que pretende retornar à Casa Branca.

Jornais como Financial Times, The Guardian e El País têm sido muito críticos ao bilionário dono do x nos últimos tempos. Está marcando época sua proclamação «uma guerra civil é inevitável», na esteira da onda de pogroms islamofóbicos no Reino Unido promovidos na rede social no início deste mês2. Também não passaram incólumes a entrevista-massagem do próprio Trump no antigo Twitter3, o deepfake de Kamala Harris que Musk disseminou contornando as regras de sua própria plataforma4 e as tentativas da extrema direita global de reproduzir os distúrbios da extrema direita britânica na Espanha usando um estupro em Magaluf (Maiorca) e um assassinato em Mocejón (Toledo) como pretextos5.

Em outra época afagado e considerado um empresário inovador e sedutor, um Iron Man da vida real, Musk é visto hoje como alguém mais parecido com o Doutor Destino e, já no plano da realidade, uma ameaça para as democracias ocidentais, que estão à mercê da inclinação ideológica do x, a rede social da qual ele se tornou viciado e, depois, proprietário.

O empresário nascido em Pretória e filho espiritual do apartheid sul-africano é ao mesmo tempo um bilionário em apuros, o homem mais rico e um dos mais influentes do mundo, o proprietário da indústria social que vem moldando a política internacional na última década, um troll que se autopercebe como alguém engenhoso, o novo líder da extrema direita «anti-woke»6, um fanfarrão que precisou se retratar diversas vezes de suas gafes, um entusiasta das criptomoedas e um paranoico com problemas de sono e vícios. «Ele quer colonizar Marte, e seu ego é quase tão grande quanto o planeta vermelho», conclui um artigo do historiador e escritor Derek Seidman em Little Sis7.

A inclinação do x para a extrema direita

Dois pontos de exclamação (!!) se tornaram o distintivo utilizado pelo dono do x para mobilizar e impulsionar a extrema direita internacional. «É a marca da besta», resume Carlos Benéitez, integrante do projeto de análises de fake news e redes sociais Pandemia Digital. Habituado a responder às mensagens de outros usuários de sua plataforma com um código lacônico baseado em palavras e emojis (cool, wow, 💯, etc.), Musk tem promovido com os dois pontos de exclamação mensagens antimigração como as de Tommy Robinson (Stephen YaxleyLennon) – antigo líder da Liga de Defesa Inglesa (edl, na sigla em inglês) – a conta Iamyesyouareno e, na Espanha, as mensagens de Rubén Pulido, analista de La Gaceta, mídia da Fundação Disenso, vinculada ao Vox.

Benéitez distingue dois tipos de aceleração na expansão do conteúdo de extrema direita no x desde a compra da plataforma por Musk em outubro de 2022. Uma delas é vinculada à expansão de notícias falsas, boatos, discursos de ódio de caráter racista, ódio religioso e lgbti-fóbico. «Mexeram no algoritmo; isso aparece mais porque esse é o objetivo de Musk», resume o pesquisador. O outro momento de aceleração se vincula à promoção, aparentemente casual, que o próprio Musk –a pessoa com o maior número de seguidores no x (não sem subterfúgios) – faz de alguns desses conteúdos por meio das exclamações ou de outras intervenções que fazem «disparar a variedade de impressões e interações, tanto naturais, de pessoas que recebem essas informações, como de contas automatizadas», indica Benéitez.

Para a jornalista Marta G. Franco, autora do recente Las redes son nuestras [As redes são nossas]8, Musk é provavelmente a melhor notícia para a extrema direita neste período histórico:

Ele é o braço tecnológico da direita reacionária, mais uma peça da «Alt-Right», ou como quisermos chamar essa mutação ultratóxica do capitalismo que surge como resposta à onda de movimentos de mudança articulados pela internet nas duas últimas décadas. É um passo adiante dessa Internacional do Ódio: começaram primeiro a investir em bots, trolls pagos, páginas de fake news e influenciadores afins, e com Musk, passaram a ter a oportunidade de comprar sua própria mídia para continuar distorcendo a conversa pública.

O analista Jonathan Freedland catalogou Musk como «a figura mais importante da extrema direita mundial» e lembrou que ele «tem o maior megafone do mundo»9. O fato é que ele não está sozinho. Aos «supercompartilhadores» como Robinson, comentaristas e influencers de extrema direita como Andrew Tate e Ashley St Clair, contas como «End Wokeness» e a antimuçulmana «Europe Invasion» se somam o próprio Trump e o excêntrico britânico Milo Yiannopoulos, ex-redator de Breitbart de Steve Bannon, veículo de comunicação oficioso do trumpismo 1.0 que foi expulso do Twitter após liderar o assédio racista e gordofóbico contra a atriz Leslie Jones10.

A chegada de Musk à sala de comando do x foi um excelente acontecimento para os ultras. Foram restauradas as contas de Robinson, Trump e Yiannopoulos, do ultra antitrans Graham Linehan e também do rapper Kanye West – conhecido antissemita –, embora esse último tenha acabado desistindo de sua conta. Em um artigo de despedida no x, a colunista Katie Martin descreveu a inclinação da rede social e como os intimidadores haviam ganhado espaço por meio de um «gotejamento de racismo casual, intolerância dos edgelords [provocadores on-line], polêmicas de má-fé, dogwhistle [apitos para cães]11, desinformação grosseira, pornbots duvidosos, golpes cínicos, conspirações de chapéu de alumínio e bobagens cripto»12.

Algoritmo e filosofia do fim da espécie

No entanto, as mudanças não se limitaram à emergência desse ecossistema da «Alt-Right» internacional. A falta de transparência tem sido a grande característica do x. As já limitadas vias de acesso aos fundamentos das decisões do Twitter com relação à sua comunidade de usuários foram todas fechadas por Musk. A interface de programação de aplicativos (api, na sigla em inglês), que permitia conhecer o impacto das campanhas, passou a ser paga, o que tornou muito mais difícil rastrear a expansão da desinformação e as fake news. Além disso, Musk implementou uma série de mudanças para impulsionar seu próprio perfil, que se tornou o mais seguido na rede logo após sua aquisição.

Benéitez resume em poucas frases como ocorreu essa ascensão:

Musk perguntou aos engenheiros do Twitter por que seus conteúdos não tinham mais impacto. Um deles explicou que suas publicações não geravam interesse: o algoritmo analisa esse interesse por meio do tempo de retenção (por quanto tempo você se detém para ler o tuíte), de respostas recebidas pela publicação, retuítes, curtidas, salvamentos etc. Qual foi a resposta de Musk? Demitir esse engenheiro e pedir que sua própria conta estivesse fora do algoritmo para ser promovida massivamente.

Literalmente, Musk construiu seu próprio cassino sobre a base de uma série de comunidades que tinham crescido sem lhe dar muita atenção. «Nós nos deixamos pegar porque achamos que o saldo era positivo; na verdade, ainda acho que valeu a pena por vários anos», diz a autora de Las redes son nuestras. Jack Dorsey, o antigo dono do Twitter, tinha um perfil agradável, diz Marta G. Franco, «mas a chegada de Musk nos lembrou do problema inicial: não podemos dar tanto poder a ninguém nem depender do magnata do momento». Seja como for, ninguém questiona que tudo passou a ser diferente. «Pergunte-se: se o x fosse criado em sua forma atual, você criaria uma conta?», disparava retoricamente Katie Martin em sua despedida da plataforma. Ernesto Hinojosa, um dos tuiteiros mais seguidos da história do Twitter na Espanha e que abandonou a plataforma pouco depois que se tornou x, demonstra claramente essa apoteose de narcisismo que acabou, se não com a história comercial da rede social, ao menos com a impressão anterior de que ela era um terreno neutro:

Musk é o resultado da combinação de uma crise de meia-idade com 200 bilhões de dólares. Alguns compram um carro conversível, ele comprou uma rede social. E o problema é que justamente por ele ter se envolvido com o Twitter por tanto tempo, muita gente que até então só conhecia a versão do sul-africano criada pela imprensa, uma espécie de Tony Stark do mundo real, passou a ver sua verdadeira personalidade de menino mimado extremamente rico. Isso não caiu bem para Musk. Obcecado por seu legado e fiel ao que toda essa gente faz, ele culpou «o woke», e como os únicos que riem do que ele diz são os nazistas e os trolls de extrema direita, temos agora a rede social no estado em que se encontra13.

Um episódio de sua vida pessoal (a transição de gênero de sua filha) é o marco ao qual Musk se refere para explicar ter se tornado o principal agente da extrema direita contra o que chama de «vírus woke». No entanto, uma série de artigos de Émile P. Torres na revista digital estadunidense Salon deu mais contexto e profundidade à ideologia elitista do sul-africano, alinhada a uma corrente chamada longoprazismo, que propõe uma solução eugênica e malthusiana de reduzir a população humana e substituí-la por outro tipo de sapiens «melhorado» pela inteligência artificial14.

O autor desses artigos define o longoprazismo pelo qual Musk demonstrou publicamente seu interesse como «uma cosmovisão quase religiosa, influenciada pelo transumanismo e pela ética utilitarista, que afirma que poderia haver tantas pessoas digitais vivendo em vastas simulações de computador milhões ou bilhões de anos no futuro que uma de nossas obrigações morais mais importantes da atualidade é assegurar que exista a maior quantidade possível dessas pessoas digitais». Segundo Torres, o filósofo sueco Nick Bostrom é a figura-chave para entender o que há além da parafernália anti-woke pop e simplista com a qual o dono do x se disfarça:

Musk quer colonizar o espaço o mais rapidamente possível, assim como Bostrom. Musk quer criar implantes cerebrais para melhorar nossa inteligência, assim como Bostrom. Musk parece estar preocupado com o fato de pessoas menos «intelectualmente dotadas» terem muitos filhos, assim como Bostrom. E Musk está preocupado com os riscos existenciais das máquinas superinteligentes, assim como Bostrom. (…) As decisões e ações de Elon Musk ao longo dos anos têm mais sentido quando o consideramos um bostromiano de longo prazo. Fora dessa moldura fanática e tecnocrática, elas fazem muito menos sentido.

Do Twitter ao X: o establishment se renova

«As estratégias politicamente corretas da ‘sociedade civil’ são todas bem-intencionadas e estão associadas a temas importantes, mas parecem estar avançando rumo a um universo paralelo, incapaz de responder ao desenho de memes cínicos que conquistam rapidamente posições-chave de poder», escreveu Geert Lovink pouco antes de Musk ocupar um espaço político crucial como o Twitter15. Desde então, o algoritmo da rede social, que na última década concentrou as comunicações sociais de presidentes, ministros, representantes institucionais e um grande número de pessoas de destaque, tem favorecido a cultura do meme e a ideologia troll em uma extensão maior do que fazia até outubro de 2022.

O próprio Musk já deu vários exemplos desse modo de funcionamento. Embora os membros do novo governo trabalhista do Reino Unido tenham sido moderados em sua resposta à intervenção direta de Musk no conflito causado por pogroms racistas nas ilhas, Musk também não hesitou em desafiar o próprio primeiro-ministro Keir Starmer e divulgar (e apagar) notícias falsas sobre migração. Starmer e seu gabinete têm sido alvo das piadas e execrações do magnata hiperativo.

Em 12 de agosto, quando o comissário europeu para o Mercado Interno, Thierry Breton, escreveu uma carta ao proprietário do x para adverti-lo, com a retórica perfumada e burocrática dos centros de governança, sobre a «devida diligência» que obriga o x a moderar o conteúdo da plataforma, Musk mais uma vez se manifestou como alguém que se considera muito engraçado. O assunto parece sério do ponto de vista econômico – as multas podem chegar a 6% da receita do x –, mas o bilionário sul-africano respondeu com uma imagem extraída da comédia Trovão Tropical e a mensagem «Dê um passo para trás e foda sua própria cara», em referência a uma fala do mesmo filme. Simultaneamente, seus seguidores mais ferrenhos lançaram seus memes e advertências contra o «ataque à liberdade de expressão» e o «autoritarismo» da Comissão Europeia. Esse argumento e a distorção entre a estrutura legal estadunidense – estabelecida pela Primeira Emenda – e a estrutura europeia, mais baseada em direitos, gerou parcialmente a crise entre Musk e as instituições. Breton se referia à Lei de Serviços Digitais (dsa, na sigla em inglês), uma norma – sem equivalentes no Reino Unido e nos Estados Unidos – de proteção dos direitos fundamentais que o x talvez tenha violado com a entrevista entre Musk e Trump. Uma decisão preliminar emitida em julho indica que o x pode ter violado a dsa ao conceder o emblema azul de conta verificada a contas falsas.

Essa não é a única investigação pendente por parte da Comissão Europeia16. Até este momento, as iniciativas europeias para punir Musk por essas práticas de incitação ao ódio foram empreendidas apenas por pessoas que não fazem parte do poder público. No Brasil foi diferente: Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (stf) do país, iniciou uma ofensiva judicial contra a desinformação na qual determinou o fechamento e o controle de várias contas associadas à extrema direita – de políticos, blogueiros e influenciadores – relacionadas à tentativa de tomada do Congresso Nacional em janeiro de 2023 após a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro para Luiz Inácio Lula da Silva. Amparado na permissão legal brasileira para bloquear conteúdo com o fim de proteger as instituições do país, Moraes iniciou uma investigação contra Musk, acusando-o de obstrução à justiça. O magistrado havia ordenado ao x que bloqueasse os perfis de seis usuários do espaço de Jair Bolsonaro, um admirador de Musk, mas este se recusou a acatar a decisão judicial.

Além de seu habitual repertório de «piadas» e denúncias de «censura» na rede que comanda, Musk respondeu fechando os escritórios do x no Brasil. A conta oficial do x para assuntos governamentais aumentou a pressão sobre Moraes com uma mensagem ameaçadora: «O povo do Brasil deve tomar uma decisão: a democracia ou Alexandre de Moraes». A história prosseguiu, e o ministro do stf ordenou a suspensão do x em território brasileiro em uma decisão polêmica17.

A União Europeia evita o confronto direto

Na União Europeia, no entanto, e apesar do crescente número de críticas, o poder de Musk parece protegido. Bruce Daisley, ex-vice-presidente do Twitter para a Europa no The Guardian18, a assessora da Comissão Europeia Marietje Schaake no Financial Times19 e um editorial do El País20 instaram a não deixar as ações do bilionário sem resposta, mas nenhum mandatário optou pelo confronto direto. Contudo, Schaake mencionou um dos pontos fracos menos explorados na crítica a essa indústria social: o fechamento da torneira do dinheiro público:

Alguns líderes corporativos se tornaram tão poderosos que acreditam poder manipular os processos democráticos ou evitá-los completamente. Em lugar de ceder, como fazem muito frequentemente os líderes políticos, as empresas deveriam pagar um preço pela agressão e, em última instância, perder contratos ou outros acessos lucrativos aos governos (que seguem sendo os que mais gastam em tecnologia da informação).

Nos partidos do extremo centro, quem se expressou de maneira mais clara foi Sandro Gozi, político italiano próximo ao presidente francês Emmanuel Macron: «Se Elon Musk não cumprir as normas europeias relativas a serviços digitais, a Comissão Europeia pedirá aos operadores continentais que bloqueiem o x ou, no caso mais extremo, obrigará a desativar completamente a plataforma no território da União». O primeiro a sair em defesa de Musk foi o ex-ministro italiano Matteo Salvini, outro conhecido Joker da extrema direita.

O fato é que ainda não há na Comissão Europeia inclinação para expulsar o x do ecossistema da informação, não ocorreu nenhum êxodo de políticos, e parece improvável que Musk decida romper com o mercado europeu, que é fundamental no plano político, embora pouco rentável economicamente. No caso da Espanha, a divulgação de informações falsas sobre o crime de Mocejón não provocou nenhum questionamento do x e apenas gerou um processo contra o «anonimato» nas redes sociais.

Também se trata de dinheiro

No perfil de Musk realizado por Marco D’Eramo em junho de 2022, o jornalista italiano indicava o segredo do sucesso empresarial do sul-africano21. Para além da imagem de Musk como alguém excêntrico e visionário, D’Eramo observou como a valoração de suas empresas e «as estimativas aleatórias de sua riqueza pessoal sempre se basearam na promessa de expansões futuras e conquistas iminentes». Essa fórmula tinha e continua tendo um cliente principal: o governo dos eua. Apesar de muito discurso vazio dos centros de poder do Vale do Silício contra a ideia de Estado nação, sem o apoio estatal, seria impensável o crescimento da Tesla – a principal empresa do império de Musk – e de seus outros projetos, a empresa aeroespacial Spacex, a Openai (inteligência artificial) e a Neuralink (neurotecnologia).

«As empresas de Elon Musk receberam bilhões de dólares em subsídios governamentais nas últimas duas décadas», resumiu o Business Insider em 202122. Uma investigação do Los Angeles Times de 2015 estimou que, até aquele ano, as empresas de Musk tinham se beneficiado conjuntamente de um apoio governamental estimado de 4,9 bilhões de dólares. O artigo do Business Insider acrescentava outros números: 2,89 bilhões de dólares para a Spacex procedentes da Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (nasa, no acrônimo em inglês), outros 653 milhões em um contrato com a Força Aérea dos Estados Unidos e uma porção não publicada da astronômica cifra de 600 bilhões disponibilizados pelo governo federal do mesmo país para as empresas durante a pandemia.

Dessa forma, o interesse de Musk na campanha da Donald Trump é motivado por algo mais do que a simples simpatia pessoal. O artigo já mencionado de Derek Seidman detalha como o proprietário da Tesla se afastou de suas afinidades partidárias anteriores correspondentes à atitude da maioria dos bilionários, doar dinheiro ao mesmo tempo para democratas e republicanos, embora não na mesma quantidade, na expectativa de políticas públicas que fortaleçam suas posições ou abram novos caminhos de acumulação. Como ele mesmo admite, Musk votou nos democratas no passado, mas a aliança com Trump se solidificou com o crescimento de sua retórica anti-woke. Em julho, o empresário se comprometeu a doar 45 milhões de dólares por mês para a campanha de Trump dentro de um Comitê de Ação Política (pac, no acrônimo em inglês, grupo de interesse regulado para o financiamento) que inclui outros magnatas da economia digital, como Joe Lonsdale, cofundador da Palantir, e os gêmeos Tyler e Cameron Winklevoss, conhecidos por seu papel na fundação do Facebook e na criação da criptomoeda Gemini.

Todo esse empenho não é altruísta. O setor do Vale do Silício liderado por Musk e também a comunidade empresarial que não rompeu com a candidatura de Kamala Harris esperam que o novo governo entregue a cabeça de Lina Khan, presidente da Comissão Federal de Comércio, uma «obstinada opositora de fusões e aquisições que prejudicam consumidores e trabalhadores» e «a primeira verdadeira defensora antitruste que os eua tiveram em anos», segundo o comentarista político Jim Hightower23. Parece ridículo falar dos problemas financeiros de uma pessoa com uma fortuna de 221 bilhões de dólares, mas o acúmulo de perdas é relevante, para dizer o mínimo. Principal empresa do império de Musk, a Tesla enfrenta redução em sua participação de mercado a cada ano. Ela controla 12% do mercado em 2024, em comparação com uma fatia de participação de 17,5% há cinco anos. Com vendas em declínio, o preço de suas ações caiu 10% em relação ao ano anterior24.

Se a Tesla parece estar em baixa, o diagnóstico para o x é ainda pior. Desde sua compra e, em grande medida, após a mudança de nome – um desastre em termos de valor de marca –, a empresa está à deriva: Musk a adquiriu por 44 bilhões de dólares, e ela é avaliada hoje em menos de 20 bilhões. No final de agosto, o The Wall Street Journal publicou uma informação de grande repercussão mundial. A manchete, «Os 13 bilhões que Elon Musk pediu de empréstimo para comprar o Twitter se transformaram no pior acordo de financiamento de fusões para os bancos desde a crise financiamento de 2008–2009», apontava para algo já conhecido: o x perdeu a metade de seu valor desde a chegada de Musk, e os investidores oscilam entre seu respeito pelo criador da Tesla como alguém capaz de imaginar expansões econômicas futuras e a crescente consciência de que se trata de uma pessoa tóxica para os anunciantes25.

O crescimento de usuários da rede social se estagnou e, embora seus concorrentes não tenham conseguido chegar perto de seus números, estudos indicam que ela também perdeu influência nas últimas eleições em comparação com pleitos anteriores. Com lucros anuais de aproximadamente 160 milhões de dólares e um serviço de dívida que gera gastos anuais de 1,5 bilhão, de acordo com o próprio Musk, sua perspectiva financeira é crítica, especialmente porque as grandes empresas deixaram de investir em publicidade na rede desde o nascimento do x.

Primeiro, Musk os chamou de idiotas, depois buscou recuperar esses investidores entoando um mea culpa e, finalmente, os acusou de conspirar contra ele. Sua plataforma entrou com uma ação judicial contra anunciantes como Unilever e Mars, além de uma agência de marketing, pelo que alega ser um acordo de «boicote ilegal». Um agente publicitário citado pelo City a.m. expressou de modo bem direto as razões pelas quais os anunciantes deixaram de investir no x: «Os grandes vendedores se foram, o sistema de verificação é um desastre, a metade de seus seguidores é composta agora de sexbots, as pessoas mais interessantes se mudaram para outro lugar, quem ainda está ali publica menos, e sua linha do tempo é apenas um fluxo interminável de desgraça. Como defender a publicidade em uma plataforma como essa?»26.

«Ninguém sabe quanto tempo mais o x vai conseguir sobreviver, já que a empresa não publica seus resultados financeiros. Mas o próprio Musk admitiu em novembro que a rede poderia ir à falência devido ao boicote publicitário», apontou a revista Fortune27. O mesmo artigo indica que, embora o buraco seja relativamente pequeno em relação a sua fortuna, a única opção para o dono da Tesla é seguir vendendo participações da montadora, já que o restante de seus projetos (como Spacex e Neuralink) segue operando com base na «promessa de expansões futuras e de conquistas iminentes», nunca completamente realizadas.

O poder político e os jornalistas seguem sustentando o x

Os principais críticos de Musk não omitem um fato fundamental: sua importância é mais política que econômica. «Musk não comprou o x para fazer negócios, mas para ganhar influência», resume Marta G. Franco.

Isso é o que sempre aconteceu com veículos de comunicação deficitários mantidos por empresários. Dessa forma, o que pode acabar com o x não é a perda de receita, mas de relevância política, que os políticos deixem de usá-lo como o primeiro lugar onde publicam suas declarações, que a grande mídia pare de se esforçar para obter visibilidade na rede, que os influenciadores no x tenham menos alcance do que aqueles em outras plataformas.

Em dezembro de 2020, Ernesto Hinojosa parou de usar o Twitter. Sua conta, Shine Mcshine, tem 165.000 seguidores e não teve mais publicações depois desse dia. «A questão não foi apenas o número de seguidores, mas o fato de estar nessa rede social praticamente desde o início. Eu a vi crescer, se transformar e tornar de fato a praça pública da internet», resume alguém que, provavelmente a contragosto, se enquadra no rótulo de influenciador. Hinojosa publica hoje no Mastodon, uma rede em que tem «apenas» 22.000 seguidores. «O que me fez sair foi a tendência que a plataforma passou a adotar depois da aquisição de Musk. Sinceramente, eu tive a sensação de que permanecer lá me tornaria partícipe de sua transformação em um lugar projetado meticulosamente para amplificar aquelas opiniões que mais abomino. E quando volto agora a dar uma olhada naquela rede por curiosidade, vejo que o tempo me deu razão», destaca. Ainda que sair do x seja pouco mais do que um microgesto individual e que a soma desses gestos ainda não tenha abalado a plataforma, as tentativas e convocações para mudar para outra rede social são cada vez mais frequentes. Após o ocorrido no Reino Unido, a atividade de contas britânicas na plataforma Bluesky aumentou 60%, e a empresa relatou a entrada de políticos na rede social. Threads – a rede concorrente criada pela Meta (Facebook) –, Bluesky e Mastodon estão em uma corrida para se tornar primeiro uma espécie de bote salva-vidas para os milhares de pessoas que pulam toda semana do antigo Twitter esperando ver o que acontece depois. O abandono do x é contínuo, mas a tensão dos usuários é grande: deixar o x pode significar «ficar de fora da conversa pública», algo que afeta não só os políticos.Uma usuária do Mastodon refletiu sobre as consequências no plano individual de uma mudança de plataforma:

Deixar o tuister e vir para o mastodon é simplesmente um salto no vazio. No caminho, você vai perder muitos contatos e amigos que fez nos últimos anos, vai mudar rotinas por algo que não sabe o que é. Se, além disso, você tiver muitos seguidores e/ou isso fizer parte de seu trabalho de alguma forma (jornalistas, artistas, artesãos etc.), pode até supor uma perda econômica, de clientes…

Ela fez esse comentário antes de deixar uma pequena provocação: «É normal que você não se atreva a dar esse salto, mas não me venda isso como algum tipo de ativismo, Mari Pili»28.

Hinojosa também prefere ser cauteloso ao considerar o atual momento de críticas como o início de uma derrota definitiva do magnata sul-africano:

Eu teria muito cuidado ao assinar o atestado de óbito do x tão cedo; além de Musk ter dinheiro suficiente para financiar seu brinquedinho do próprio bolso indefinidamente, enquanto os políticos e as figuras públicas não abandonarem essa rede social, os jornalistas também não o farão e, dessa forma, ela continuará sendo importante na vida cotidiana da internet.

Esse parece ser o elemento principal e o ponto fraco que, pelo menos até a eleição presidencial dos eua em novembro, o x pode explorar. O «jardim murado» que era o Twitter sob o comando de Jack Dorsey se tornou um terreno baldio superlotado, hierarquizado e dominado pela extrema-direita sob o comando de Musk, mas a linguagem burocrática da Comissão Europeia continuará se chocando repetidamente com a lógica de «trollagem» que se tornou a norma na mídia mais influente do século xxi. «Como mencionei, o elo crítico são os políticos», diz Hinojosa. «Enquanto personalidades como o presidente do governo [espanhol, Pedro Sánchez] continuarem usando para seus anúncios públicos, a plataforma seguirá existindo por um bom tempo, ainda que esteja repleta de bots e nazistas, como de fato está».

Marta G. Franco vê no curto prazo uma pequena fissura que pode acelerar a crise do antigo Twitter:

Acredito que o declínio do x vai ocorrer paralelamente à intensidade do empenho de Musk para colocá-lo a serviço da campanha de Trump. Se ele for longe demais, os democratas vão embora. A questão é se eles simplesmente mudarão para a Meta [Threads] ou se começarão a levar o problema mais a sério e diversificarão as plataformas. Acho que não são tão estúpidos, e prevalecerá o segundo cenário.

Portanto, a capacidade de emanação política dos eua é um dos fatores que podem afetar o futuro imediato do setor, tanto no caso do x quanto de seus rivais, os corporativos (mesmo que de código aberto, como o Bluesky) e os cooperativos (o Mastodon). Na União Europeia, o desenvolvimento de uma diretiva sobre serviços digitais ou, no caso da Espanha, de uma Lei de Imprensa pouco avançada pode aliviar os aspectos mais prejudiciais da cultura de trolls promovida pelo comando do x, mas o principal problema continua sendo o acúmulo de poder em uma única pessoa. Esse problema se torna ainda pior se essa pessoa acredita, entre outras coisas, que a espécie humana deve dar lugar a máquinas superinteligentes, como os búfalos deram lugar a pistoleiros no passado.


Nota: uma primeira versão deste artigo foi publicada em El Salto, 23/8/2024, com o título «x puede ser una víctima de la guerra que Elon Musk tanto desea». Tradução: Luiz Barucke.

  • 1.

    G. Lovink: Sad by Design: On Platform Nihilism, Pluto Press, Londres, 2019.

  • 2.

    Juanjo Andrés Cuervo: «Racismo y fake news: el alzamiento de la ultraderecha en el Reino Unido» em El Salto, 5/8/2024.

  • 3.

    Michael Gold: «Entrevista de Musk y Trump: poca polémica, muchos problemas técnicos» em The New York Times, 13/8/2024.

  • 4.

    «Musk comparte un ‘deepfake’ de Kamala Harris en su cuenta de x y asegura que ‘vivimos en los mejores tiempos de la historia’» em Latinus, 26/7/2024.

  • 5.

    «El Puntual 24h de nuevo en el centro de las noticias falsas racistas» em Pandemia Digital, 21/8/2024.

  • 6.

    O termo «woke» (acordado/consciente), como um estado de alerta contra as injustiças e a discriminação social, especialmente vinculadas ao racismo, tem se tornado o termo mais usado pela extrema direita contra o progressismo [n. do e.].

  • 7.

    «These Billionaire Donors Stand to Gain Big from Presidential Election» em Little Sis, 15/8/2024.

  • 8.

    M.G. Franco: Las redes son nuestras. Una historia popular de internet y un mapa para volver a habitarla, Consonni, Bilbao, 2024.

  • 9.

    J. Freedland: «You Know Who Else Should Be on Trial for the uk’s Far-Right Riots? Elon Musk» em The Guardian, 9/8/2024.

  • 10.

    Yiannopoulos perdeu centralidade no mundo da extrema direita após várias piadas sobre pedofilia [n. do e.].

  • 11.

    O termo faz referência às linguagens codificadas e compreensíveis para um tipo de público, mas sem significado para os demais, assim como os apitos ultrassônicos para cães pastores que somente os animais podem ouvir [n. do e.].

  • 12.

    K. Martin: «How to Break Up with Your x» em The New York Times, 17/8/2024.

  • 13.

    Entrevista do autor.

  • 14.

    É. P. Torrez: «Understanding ‘Longtermism’: Why This Suddenly Influential Philosophy Is So Toxic» em Salon, 20/8/2022.

  • 15.

    G. Lovink: ob. cit.

  • 16.

    Karen Kwok: «Elon Musk’s Best Move in eu Fight May Be an Exit» em Reuters, 22/8/2024.

  • 17.

    Em 8 de outubro, Moraes autorizou o retorno das atividades do x no território brasileiro, após a empresa comunicar ao STF o pagamento das multas que lhe foram aplicadas pelo descumprimento de decisões judiciais [n. del e.].

  • 18.

    B. Daisley: «As an Ex-Twitter Boss, I Have a Way to Grab Elon Musk’s Attention. If He Keeps Stirring Unrest, Get an Arrest Warrant» em The Guardian, 12/8/2024.

  • 19.

    M. Schaake: «Political Leaders Must Push Back against Tech Bullies» em Financial Times, 19/8/2024.

  • 20.

    «Elon Musk despeja la incógnita de X» em El País, 15/8/2024.

  • 21.

    M. D’Eramo: «Iron Musk» em El Salto, 21/6/2022.

  • 22.

    Jason Lalljee: «Elon Musk is Speaking Out against Government Subsidies. Here’s a List of the Billions of Dollars His Businesses Have Received» em Business Insider, 15/12/2021.

  • 23.

    J. Hightower: «Beware the Corporate Democratic Donors with Knives Out for Lina Khan» em Common Dream, 16/4/2024.

  • 24.

    «Tesla ha perdido cuota de mercado en todas las geografías» em E&N, 18/8/2024.

  • 25.

    Alexander Saeedy e Dana Mattioli: «Elon Musk’s Twitter Takeover Is Now the Worst Buyout for Banks Since the Financial Crisis» em The Wall Street Journal, 20/8/2024.

  • 26.

    Ali Lyon: «More Advertisers to Flee x after Recent Elon Musk Lawsuit and Riot Comments» em City A.M., 9/8/2024.

  • 27.

    Christiaan Hetzner: «Elon Musk’s Financial Woes at x Have Tesla Bulls Fearing He Will Liquidate More Stock» em Fortune, 15/8/2024.

  • 28.

    Petarda of the Stars, 20/8/2024, disponível em <https://mstdn.social/@pes_mara...

Este artículo es copia fiel del publicado en la revista
ISSN: 0251-3552
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